segunda-feira, dezembro 26

A TERRA É AZUL

E o meu novo celular Motorola também. Quando ligado, a luz também é azul, feito o sabre de Luke Skywalker. Gosto da marca da Motorola, parece o morcego de Batman. Tá ali recebendo a primeira carga de bateria. Custou 1 real. É pelo menos a metade do tamanho do meu velho Nokia. Será que funciona?

COMA IRREVERSÍVEL

Sábado, a caminho do Burburinho, meu celular cai de cara no chão do estacionamento e desmaia. Desde então está incomunicável.

domingo, dezembro 25

A NOITE É UMA CRIANÇA

Acordo sexta-feira pré-natal e tem ligação de Robertão. Não vai dar pra ir, Robertão, me desculpa aí com Vítor; mas estão todos te esperando aqui com camisas da Capitão Gancho; puxa vida, mas vou me encontrar com o editor no Paço Alfândega, revisão final dos impressos do Morte e Vida; beleza, então a gente se vê no Garrafus. Com Sidney no Bonaparte do Paço, cafés expressos, eis aí o teu filho, nosso filho, ficou muito bonito, mais uma rodada, sem chantili dessa vez, coisa mais de baitola é essa, Sidney é cearense, educado aos pés de Patativa do Assaré, tu ainda não tens o meu romance, não, agora tem, na dedicatória: depois eu vou perguntar se já leu, gim. Do Paço vou na redação semi-deserta, ainda não chegaram os exemplares da imprensa, tiro graninha no bradesquinho, toca pra Boa Viagem pra buscar a minha carteira de jornalista que deixei empenhada no Boteco. Semana passada eles não tinham Visa Eletron e nem eu tinha dinheiro, vou aproveitar pra revisar, página por página, os exemplares que me couberam nesse latifúndio, a primeira leva sempre tem mais erros. Não tem vaga, mas de qualquer forma é muito escuro lá mesmo, vou acampar meu circo no McDonald's. Criancinha louríssima choramingando atrás de mim, o pai pergunta onde eu comprei esse livro de João Cabral. Não está à venda, vai ser distribuído como brinde de Natal da Fundação Joaquim Nabuco; sou do Rio Grande do Sul, já fui editor do Globo Repórter e o conheci pessoalmente no Rio, daqui do Pernambuco já saiu muita gente boa, menos o Lula, né; "do" Pernambuco é foda, e Lula ainda é pernambucano? pensei que tínhamos cedido o passe dele pra São Paulo. Pois tome aqui, o primeiro a ser dado vai ser o seu; muito obrigado, Joaquim, vai ser o único presente de Natal que ganharemos, estamos longe de casa; Joaquim não, Leugim; desculpe, eu li errado aqui na capa, bote seu telefone aí, eu tenho amigos, nunca se sabe, essas coisas acontecem assim meio por acaso, né? Foi-se levando a lourinha choraminguenta e a mãe menos loura mas de olho igualmente azul. Elis liga de judeu, eu ligo de volta pra Elis e ela diz que não vai pro Garrafus porque prefere ir amanhã pro Burburinho. Tem certeza, depois a gente vai pra madrugada do shopping; tenho, tou com sono. Chego no Garrafus, Jô Pinto na bateria, Morcegão gripado e Biu com tendinite, Leo vai tocar e cantar e Robertão no baixo, El Mocambo, Capitão Gancho e Saurius misturados. Encontro com Manu e Tonca, marido de Manu e ex-guitarrista da Querozene Jacaré, de volta do Paraná, vai de vez com a família toda em janeiro, Manu, vem cá, deixa eu ir pegar um negócio ali no carro, dedicatórias mil, agora te peguei, vi o de Manu e fiquei com inveja, ela disse que não vai ser vendido, por favor, dedica um pros meus filhos, eu quero que eles leiam coisa boa. Vá lá, por uma boa causa. Que bom, antes de Tonca e Manu irem embora de vez, vão ouvir a gente pré-estrear "Since I've Been Loving You", agora a Capitão em peso no palco com a chegada de Mário. Tonca veio pedir em nome da mesa dele "I Put a Spell On You", beleza, também vai rolar. Fim do show, todos pro shopping ver o show de Natacha, com "c" mesmo e com com Lucas irmão de Leo na bateria. Chegamos, tudo lotado, estacionamento de graça, queria o quê, onde é o show? Liga pra Leo, onde é o show? na praça de alimentação velha, toca pra praça velha, não vai ter show, foi só a gente passar o som e já teve gente cercando e fazendo zoeira, os caras tão com medo, teve briga lá no espaço do DJ. Isso aqui tá um carnaval de Olinda, é, literalmente quase, até troça com orquestra de frevo e tudo tá rolando por aí, o shopping, às três e meia da manhã, surreal, é, eu e Mário já vimos e já pulamos atrás. Natacha diz pra irmos circular. Liga Leo e o outro Lucas, o que não é o irmão de Leo e é baixista da Saurius, pergunta como está a coisa, eu digo como a coisa está, ele pergunta se tem mulher gostosa, digo que que tem muita, e que estou de braços dados com a mais gostosa de todas, Natacha, que segura no meu braço, e ri, não sei como, ela que deve ouvir isso mil vezes por dia. Eu digo que ela tem um nariz lindo, e ela ri de novo. Natacha empina o nariz aerodinâmico e faz o gesto de polegar em direção à boca: quer beber. Então todos à praça do chopp, eu não tenho bem certeza se existe essa praça, mas lembro vagamente de um espaço no meio do corredor onde tinha um chopp escuro igual ao do Boteco. Nosso grupo de uns oito ou nove anda pra lá, anda pra cá e chega no tal corredor, e um dos restaurantes tinha uma grande algazarra de gremistas cantado o hino do clube, até a pé nós iremos, invasão dos gaúchos? e tomando chopps gigantes. Onde que serve aquele chopp, não é aqui, só lá, pois é dele que queremos, junta essas mesas aí, pega mais cadeira, três chopps daqueles, quanto é, 12 reais? Mas é 1 litro e duzentos, é o equivalente, sai até mais barato. Chegaram os chopps, Natacha nem conseguiu levantar o dela, trocou com Lucas de Leo por uma tulipa normal, que agora parecia ridiculamente minúscula. Mário diz que fui falar do nariz de Natacha e agora ele não consegue tirar os olhos dele. Brindamos os superchopps e eu dei um supergole no meu, pra me amostrar. Consegui, todo mundo notou admirado que o meu copo deu uma baixa considerável. Mais uns quatro ou cinco goles caprichados e eu esvazio o balde de vidro. Surpresa: a mesa dos gremistas me aplaude com grande estardalhaço. Pronto, estava estabelecida a parceria competitiva, quando um de lá zerava a espuma a gente respondia com igual algazarra. Daí a pouco estava todo mundo pedindo o tal chopp pra ver em quantas goladas conseguia enxugar. Eu, que já tinha ficado bêbado com o primeiro, tive que dividir o meu segundo com Lucas baixista, e que ficou tão bêbado também que seguimos Natacha ao banheiro das mulheres quando ela foi fazer xixi. Lucas fez xixi também no banheiro das mulheres, sob olhares divertidos das que estavam dentro, e eu segui Natacha até a porta de vidro fosco da cabine, que ela segurava com toda a força que lhe restava do riso. Quando voltamos estavam todos vaiando e aplaudindo a tudo e a todos, e ai da mulher que passasse de minissaia no primeiro andar que dava vista pro corredor, era um barulho ensurdecedor. Começou a juntar gente ao redor do corrimão, e escolhíamos alguma mulher pra expulsar com gritos de "desce, desce!",ou algum homem pra provocar com gritos de "veado, veado!". Saímos de lá às sete e meia, dia claro e sol quente. Sete e meia da noite, quando acordo, Elis me liga e diz que foi uma pena ela não ter ido ao shopping comigo: várias amigas e amigos dela ligaram no dia seguinte contando de uma turma de bêbados que tomava chopps enormes e passava o tempo todo tirando onda com todo mundo.

VELOCIRAPTOR

Nada mal para um primeiro ano de blog: Humphrey Blogart foi eleito o blog do ano por Debbie, a jornalista e blogueira mais ninja da Web. A primeira vez que li o blog dela me apaixonei imediatamente. Pelo blog. Infelizmente não deu tempo de me apaixonar por ela também: na primeira pálida e tímida investida, em Porto de Galinhas, veio um T-Rex amarelo, abocanhou a presa e saiu correndo com ela na boca, onde só se viam duas perninhas agitando sapatilhas laranja.

IMPRIMATUR CONSUMMATUM EST

Agora é definitivo e irreversível, como toda morte que se preza: "Morte e Vida Severina em Quadrinhos" está impresso e tenho aqui em minhas mãos um exemplar. Aliás, tenho vários exemplares para presentear aos meus amigos e amigas. Quem quiser um, com dedicatória e autografado pelo autor, acuse-se me mandando um e-mail. Oferta por tempo ilimitado enquanto durar o estoque.

terça-feira, dezembro 20

A MORTE COMO ELA É

Estou eu outro dia tomando meu café da manhã às duas da tarde, e eis que liga a minha mãe querendo saber meu cpf e identidade. Mãe é mãe, dei sem pestanejar. "-Não se preocupe, é uma coisa boa". "-Espero que sim, né?" Ela riu e desligou. Dias depois fui almoçar na casa dela e as duas, mamãe e minha sobrinha Elis, ficaram me sacaneando dizendo que tinham comprado uma coisa que toda a família poderia usar, e se eu adivinhasse o que era eu poderia inaugurar. Aventurei os óbvios e os não tão óbvios, mas não cheguei nem perto, ou cheguei metaforicamente uma vez, segundo Elis, quando disse que era um passaporte para uma viagem. Mamãe perguntou se eu queria inaugurar assim mesmo, sem ter adivinhado. Claro que sim! Pois está aqui, fique à vontade: e me entregou um folder cheio de fotos coloridas de um cemitério. A tal coisa era um jazigo perpétuo para a família. Uma tal de "Morada da Paz", um cemitério desses que parecem um campo de golfe, com vastos gramados e plaquinhas no chão ao invés de túmulos de verdade. Vejam só, senhoras e senhores, de tanto eu falar aqui essas últimas semanas sobre onde e como eu queria ser enterrado, quis o destino e Dona Socorro, Mary Help para os íntimos, que eu fosse tirar a soneca final lá pras bandas de Olinda. E num pseudotúmulo. Será que eu seria atendido se pedisse, como último desejo, ser enterrado no de Santo Amaro mesmo, junto com o meu pai e os meus tios? Eis aí algo que provavelmente nunca saberei com certeza. Mas de qualquer forma a anedota já está correndo solta pela família, mamãe já pegou o meu irmão mais velho e a minha cunhada, e a próxima vítima deverá ser o meu irmão do meio. Mas pra dizer toda a verdade, não me importa muito onde serei enterrado, o que mais me entristece é o fato de que eu vou perder o meu próprio enterro, digo, como evento em si. É que na nossa família os enterros geralmente são muito engraçados. Chega todo mundo muito choroso e cabisbaixo no início, mas depois, conversa vai, conversa vem, e sempre se relembram fatos hilariantes e aos poucos a coisa toda vai virando zona. Naturalmente não muito perto dos mais interessados no defunto, para não parecer desrespeito. Às vezes nem precisa relembrar, a própria efeméride se encarrega de produzir a suas presepadas. Um dos últimos, bastante concorrido, de um dos nossos tios, um outro tio, irmão dele, segurava solenemente na alça do caixão, enquanto todos os outros presentes do cortejo fúnebre olhavam pra ele desconfiadíssimos. Foi socorrido por uma prima nossa que chegou correndo esbaforida, sorrindo amarelo, pediu mil desculpas e conduziu-o gentilmente para o enterro correto, lá do outro lado do cemitério.

segunda-feira, dezembro 19

VOLTA O ENTERRO DA PORTA DO CEMITÉRIO

Que o defunto ainda se bole. Ontem me chega Sidney com as revisões do texto do Morte e Vida: praticamente em toda página tem uma ou outra vírgula faltando, e numa página eu simplesmente engoli uma estrofe inteira! É que eu, procurando sarna pra me coçar, resolvi escrever o texto integral todo na munheca. Convenhamos, quadrinhos com texto de máquina fica meio brocoió. Mas quem escreve não pode revisar, primeira lei da escribo-termodinâmica. Permissão para fumar, Doktor Kryz!

KING KONG É O BICHO!

Pode ir sem medo, Cris, o cara da camisa do Senhor dos Anéis estava certíssimo. São três horas que parecem três minutos, enquanto que o Senhor dos Anéis são três horas que parecem três semanas. Só uma coisa os gênios da animação digital ainda não conseguiram fazer, e pelo jeito tá difícil: transmitir uma sensação de peso corporal mais convincente. Chegaram perto com o Homem Aranha, eu pensei que ia deslanchar com o tempo e o aperfeiçoamento das técnicas, etc. Retrocederam em King Kong no nativo que pula em salto com vara. Parece de isopor. Fantasia de Disney, todo na munheca, fez mil vezes melhor com as hipopótamas bailarinas. Por que será isso? Não entendo. King Kong tem peso, e eu, como sempre, que fico até o final dos créditos e o apagar das luzes, soube porque: tem um ator dentro, com nome e sobrenome e tudo. Esse vai passar um tempinho sem querer comer banana.

quinta-feira, dezembro 15

DUBIOUS FANTASY

É realmente uma grande pena que Mark Chapman não tenha matado Yoko ao invés de John. John merecia no máximo um tiro na bunda, pra deixar de ser bundão. E outra vantagem é que não estariam nos enchendo o saco mil anos depois com documentários xaroposos, como falou Mardoux no seu bloguinho azul, e aquela megera indomável ainda continuando vagando por aí lépida e fagueira (Yoko, não Mardoux), se fingindo de viúva. Se nos enchem o saco hoje, minhas caras e jovens leitoras, vocês não fazem idéia da chateação que foi isso em 1980. Tocava "Imagine" até em terreiro de macumba. Eu tinha uma namorada nessas priscas eras que nunca tinha ouvido falar de John Lennon na sua curta vida. No máximo sabia vagamente do que se tratava os Beatles. Lembrai-vos que era outro John, o Travolta, que pontificava nesta época. Pois fizeram um espalhafato tão grande com esse assassinato que a bichinha de repente viu-se fanática por John Lennon. Mais ou menos assim como Mardoux que, quando era jovem, apaixonou-se por Jim Morrison quando viu o filme dos Doors com Val Kilmer. Pois a minha namorada comprou todos os discos de Lennon, e, oh, horror dos horrores, chegou a se corresponder com Yoko Ono! Ela me mostrou uma carta da japa bruxa, de papel mesmo de verdade, tudo bem que devia ser alguma coisa meio que padronizada pros fãs, mas estava lá. Lembrai-vos também que computador nesse tempo só tinha na NASA pra mandar gente pra Lua. Internet então, só ia chegar ao usuário brasileiro uns quinze anos depois. Mas ninguém me tira da cabeça que Chapman foi um hitman. Grande coisa, diz a minha leitora, torcendo o nariz, todo mundo sabe que ele era um Manchurian Candidate dos milicos xenófobos americanos. Não, menina, retifique o seu nariz, tou falando que ele foi contratado pela própria Yoko, daí ele ter poupado ela. Lennon estava lá no seu edificiozinho Dakota, feliz da vida no ostracismo, ninguém nem lembrava que ele existia e nem enchia o seu saco, tão facilmente inflável, pois como se sabe, ele era o Seu Lunga dos Beatles. E Yoko lá, só matutando, foi pra isso que eu me casei com ele, foi pra isso que acabei com os Beatles? Cadê os holofotes, cadê a mídia, cadê os milhões de dólares? Não tem mais nem uma guerrinha do Vietnã pra se protestar nua em cima da cama. Que tédio, que frustração, que homem sem iniciativa, sem ambição, não faz nem rock'n'roll mais, só faz essas musiquinhas românticas ridículas que ficam em último lugar nas paradas. Acho que vou dar uma agitada nisso aqui. E deu mesmo: molhou a mão de Mark e o doidão meteu bala. Depois do assassinato, o disco Double Fantasy foi pro topo das paradas, John, de chato de galochas, transformou-se subitamente num novo Elvis. E Yoko, claro, vestida de preto, ficou sendo a fiel depositária do espólio do mito, com a mídia eternamente ao seu dispor, recebendo toda a atenção que ela achava, e ainda acha, que merece, e cartas de fãs e neo-fãs do mundo inteiro. Inclusive do Brasil. Inclusive da minha namorada. Nobody deserves.

terça-feira, dezembro 13

THE UNIQUE, ONE AND ONLY ORWELL’S NINETEEN EIGHTY-FOUR CENTENNIAL EDITION ou THE BIG BROTHER IS NO LONGER WATCHING US

Ontem, depois de três agônicos meses de intenso sofrimento e angústia, Leugim finalmente terminou de quadrinizar o “Morte e Vida Severina”. Este feito homérico e quixotesco merecia uma celebração literária, e fomos ambos, ele e Miguel, tomar um milk shake de café na Livraria Cultura. Nada de cigarros, no exato momento que entregamos o cd com as imagens ao assessor de Mário Hélio, editor da Massangana, voltei a ter ojeriza por fumaça e obriguei-o a parar de fumar. Aprovetei que teria que comprar o presente do meu amigo secreto e iniciei pela Cultura o meu retorno ao mundo dos vivos. Lá chegando, lembrei-me de uma conversa que tive no jornal com uma colega nossa que completou 21 anos agora em dezembro, na qual foi citado o livro de Orwell “1984”, que é também, claro, o ano em que ela nasceu. Fiquei com saudades desse romance que tanto me impressionou quando o li no próprio ano de 1984, e lembrei-me que as minhas duas versões, em inglês e português, tinham ficado com a minha ex-posa. Falei com a moça que atende e a moça me trouxe cinco edições diferentes, quatro em inglês e uma em português, e levei todas pra tomar milk-shake conosco. As de inglês eram estranhamente mais baratas. Uma delas, uma preciosidade intitulada “Centennial Edition”, referindo-se naturalmente ao nascimento de Orwell, que nasceu em 1903, trazia capa e orelhas originais da primeira edição do livro em 1949 ( que foi escrito em 1948, daí a referência a um futuro distante qualquer, só invertendo os dois últimos dígitos). Notinha explicativa no rodapé da orelha final esclarece e informa que esse resgate foi possível graças a uma cortesia da Brown University Library, que tinha um exemplar com a arte da capa da edição original. Valeu, Brown! Uma delícia de edição, que tem um detalhe adicional chinfrosíssimo: tem a borda serrilhada, ou batenteada, ou desnivelada, não sei como se chama aquilo. Concluindo, excelência: a borda oposta à lombada, ou seja, a parte que usamos para abrir e folhear o livro, foi cortada em tamanhos ligeiramente diferentes, de modo que, se olhamos o livro na horizontal vemos um perfil serrilhado. Deve ser pra facilitar o folheamento. Olha só que charme. Eu compraria mesmo se ainda possuísse as minhas ambas versões, um belo objeto, edição de colecionador. Esse livro, falando do texto do romance propriamente dito, prova definitivamente, se é que ainda não tinha sido definitivamente provado, que não existe frase clichê em literatura, dependendo do contexto em que se diga, a frase mais lugar-comum que um homem possa dizer a uma mulher, ou vice-versa, pode tomar dimensões espetacularmente bombásticas. E mais não digo pra estragar a surpresa de quem ainda não leu. E este livro, e agora voltando novamente ao objeto físico e palpável que eu segurava, apalpei e segurei com ainda mais força quando soube que era um exemplar único. Um exemplar único, o orgasmo do bibliômano! Na hora de pagar os dois, pois comprei também o em português, caro que só a porra, a moça do caixa cismou com o meu exemplar único: -Tem alguma coisa errada aqui. –O que? O que que tá errado? Era o seguinte: ela passava o código de barra nos dois livros e aparecia na telinha dela duas vezes o número “1984”. Mas só que no meu exemplar único não tinha número nenhum na capa, mas escrito por extenso o título original em inglês: “NINETEEN EIGHTY-FOUR”. Esclarecido o dilema, me enxotaram gentilmente, pois já passava das dez e meia e eu era o único e pentelho cliente ainda lá dentro, as luzes quase todas apagadas, e ainda tendo o desplante de ficar tagarelando ao celular com Bia Amorim justamente sobre o fato de as luzes estarem quase todas apagadas e eu ser o único e pentelho cliente ainda lá dentro. Saí de lá um novo homem. O Big Brother Mário Hélio não estava mais fungando no meu cangote, e não precisava mais duplipensar na hora de cometer prazeres simples da vida, como ir ao cinema, escrever no blog ou cantar com a banda. Voltei a ser um cidadão livre da opressão orwelliana da métrica milimétrica cabralina e do calendário de lançamentos editoriais de fim-de-ano. Poderia até, se quisesse, quem sabe, arranjar uma namorada, de preferência chamada Júlia. Mas só depois de ler o meu exemplar único.

sexta-feira, dezembro 9

BENGALADAS

(Luis Fernando Verissimo, O Globo, 8 de dezembro de 2005)



Longe de mim estimular a violência no país, mas pensei o seguinte: deveria haver uma lei que permitisse a cada cidadão, ao chegar a determinada idade — digamos 70 anos — usar sua bengala contra quem quisesse, sem o risco de retaliação, reprimenda ou processo. É claro que haveria uma regulamentação. O cidadão não poderia simplesmente sair a dar bengaladas indiscriminadas. Teria uma quota anual de bengaladas livres que, se ultrapassada, aí sim lhe traria conseqüências legais. Dentro da sua quota ele poderia bater em quem quisesse sem ser responsabilizado e sem ter nem que explicar por que batia. Mas se excedesse a quota permitida teria sua bengala confiscada.


Os critérios para bater seriam subjetivos: velhos desafetos e implicâncias, indignações passageiras, diferenças artísticas, políticas ou monetárias, ou a convicção que mesmo sem uma razão definível algumas pessoas pedem bengaladas, é ou não é? Os cidadãos poderiam negociar suas quotas: quem já tivesse esgotado as suas mas ainda precisasse dar algumas boas bengaladas compraria quotas de outro, menos ativo. Teria que ser encontrada uma maneira de evitar bengaladas em bando, vários cidadãos irados se reunindo para bater num só. E casos de reincidência doméstica: velhos casais gastando suas quotas dando bengaladas um no outro o ano inteiro, só variando para acertar, por exemplo, um cunhado.

Acabaria o problema do que dar para pessoas de setenta anos no seu aniversário ou no Natal, além de meias e caixinhas de remédio. Bengalas! Com uma licença oficial para usá-las à vontade, dentro das regras estabelecidas e do bom senso, e com um hábeas-corpus preventivo para o caso de algum excesso de iniciante. Alguém às vésperas de fazer 70 anos mal poderia esperar para, finalmente, pôr as mãos numa bengala e numa licença para bater. Muitos já teriam uma lista de prioridades pronta para quando começassem a dar bengaladas — e treinado bengaladas certeiras em segredo, para não perder tempo quando começassem.

É difícil que a minha idéia pegue, mas, por via das dúvidas, leitor, faça desde já a sua lista: em quem você bateria se tivesse a sua bengala e a certeza da impunidade? Na minha lista já tem dezessete.

LÍNGUA VIVA

Italiano é latim na hora do recreio.

quinta-feira, dezembro 1

MORTE E VIDA EM SANTO AMARO

Hoje foi a vez do Santo Amaro. Mudei de idéia. Quero ser enterrado no Santo Amaro mesmo. Aquilo sim é que é uma cidade dos mortos. Já que se vai morrer mesmo, que seja em grande estilo. A eloqüente imponência do túmulo de Joaquim Nabuco. A pungente descontração do túmulo de Chico Science. Árvores centenárias e gigantescas. Cristos enormes de granito preto. Anjos com cara de Davi de Michelângelo. Tinha até uma tumba abandonada com a lápide quebrada. Fui espiar na esperança de ver algum objeto esquecido do morto, sem esperança de encontrar nada, claro. Pois tinha, entre outros ossos menores, um longo e branco fêmur. Fiquei paquerando o bichão durante algum tempo, tentado a surrupiar. Violação de túmulo, 1 a 3 anos de prisão mais multa. Mas seria o maior sucesso entre os meus sobrinhos. Mas não tinha nenhum jornal velho por perto, e no mínimo causaria espécie entre os seguranças da portaria eu sair do cemitério com aquele ossão debaixo do braço. No happy hour do Central, Naara me disse que ainda bem que eu não roubei, pois um amigo dela botou um osso humano debaixo do travesseiro pra poder sonhar com o número da megassena e vive tendo azar até hoje. Escapei por um triz. Há males que vêm pra bem, vão-se os fêmures, ficam-se os dedos.