domingo, junho 15

ARS GRATIA ARTIS

ARS GRATIA ARTIS, arte gratuita, arte pela arte, arte não engajada, a quimérica inscrição na vinheta do Leão da Metro, que na minha humilde arrogante opinião deveria ser o lema de todos os estúdios cinematográficos. Quimérica porque há controvérsia, há quem diga que não há arte desengajada. Mas isso é assunto para beber muitas cervejas em acirrado debate com a sofisticada e iluminada mente de Roma, o nosso guitarrista solo da Creedence Cover.


De qualquer forma, sábado cheguei cedo em casa, depois de ir pro aniversário da avó de Michel, o nosso baixista, e botei no dvd nada mais nada menos do que "Os Dez Mandamentos". Três horas e meia deveriam ser suficientes para me dar sono. Com overture, intermission e exit music, tudo a que tem direito uma longa superprodução dos anos 50. "Doutor Zhivago" e "E o Vento Levou" também têm essas bossas.


Era um filme obrigatório em época de Semana Santa nos meus tempos de menino. Como não existiam videolocadoras e nenhuma emissora de tv ousava botar no ar um filme tão longo (pelo menos não aqui no Brasil: em "Contatos Imediatos do III Grau" os filhos de Richard Dreyfuss o assistem na sessão da tarde), era a única oportunidade de rever a cena mais espetacular jamais filmada em todos os tempos, que era, claro, a abertura do Mar Vermelho. Abertura e fechamento em cima das carruagens do filho da puta do faraó. Eu até pensei que agora iria achar o efeito especial risível, mas não, ainda me faz, e fez, ficar boquiaberto. Continua sendo, portanto, porque foi filmado mesmo de verdade, e não gerada em computador. Em 1956 a mãe de Bill Gates ainda era uma adolescente que começava a suspirar por Elvis, recém saído do anonimato.

Mas eis que, à semelhança do cajado de Moisés que turva as límpidas águas do Nilo com sangue, uma sombra se espalha pelo filme como a névoa da morte pelas rua do Egito. Antigamente, quando o filme era muito importante, o próprio diretor aparecia no trailer para apresentar o filme. Hitchcock fez isso no trailer de "Psicose". Cecil B. DeMille, não satisfeito em apresentar o trailer, arvorou-se também a apresentar o filme. Sai de trás de uma imensa cortina, e, reconhecendo ser um procedimento incomum, faz um pequeno discurso de abertura depois da tal música da overture. Pelo menos no meu dvd, não me lembro dessa faceta do véio no cinema. Vai ver cortaram aqui no Brasil, era vaia na certa. Depois de um blábláblá sobre os historiadores antigos que ajudaram a compor a história da juventude de Moisés, ele diz que o tema do filme é o nascimento da liberdade. Se os homens devem ser governados pela vontade de ditadores, no caso Ramsés, ou pela lei de Deus. Ou se os homens são propriedade do Estado, no caso o Egito, ou se são almas livres, submissos só ao Senhor. E que essa questão ainda está em pauta hoje em dia, no caso a década de 50, o auge da Guerra Fria. Uma estocada evidente na Rússia comunista. E, claro, ele quer dizer subliminarmenteque os homens livres que não são propriedade do Estado são os que vivem nos Estados Unidos da América.

Ô, Cecil, meu véio, até concordo com você politicamente, pelo menos no que concerne à tutela do Estado, pois nem acho que a América seja lá essas pregas de Odete todas em matéria de democracia. Taí JFK que não me deixa mentir, sem falar no estranhíssimo sistema eleitoral para presidente. Mas não precisava estragar a inocência de um dos filmes mais puros e altruístas da minha doce infância. Assistir aos Dez Mandamentos era como participar de uma liturgia. Não se jogava saquinho de pipoca amassado na cabeça de ninguém durante a sessão. Saíamos, depois daquela sacrossanta maratona cinematográfica, de alma contrita e circunspecta, e demorava algum tempo até voltarmos a dizer palavrões uns com os outros.

A partir daí eu comecei a procurar chifre em cabeça de cavalo. Moisés, que quando soube que era hebreu e não egípcio, abandonou o palácio e foi trabalhar na lama com os escravos, passou a ser um concessão ao racismo étnico americano. Porque lá nos States, uma vez flamengo, flamengo até morrer. E eles transformaram Nefertiti em uma verdadeira quenga pra poder justificar que Moisés não livrou a barra do filho dela na passagem do Anjo da Morte. Farisaísmo puritano.

E tem também outras coisas, não relacionadas com a visão americana do mundo mas com a história em si, que o distanciamento provocado pelo discurso de Cecil me fez matutar. Por que raios Moisés não voltou à tribo de Ismael, que o acolheu tão gentilmente e lhe forneceu casa, comida, roupa lavada, cartão de crédito e até uma dedicada esposa, para incluí-los na caravana do êxodo em busca da Terra Prometida? Esse simples gesto de gratidão teria evitado a eterna guerra no Oriente Médio dos palestinos contra os judeus, e ainda hoje poderíamos visitar New York avistando ao longe, de cima da ponte do Brooklin, as imponentes Torres Gêmeas.

Uma outra coisa que o ceticismo me propiciou foi a crença que saquei o momento exato em que Spielberg teve a idéia do argumento do "Caçadores da Arca Perdida": na fala final de Moisés antes de se separar do povo, recomendando o que se poria dentro da Arca da Aliança. Essa pretensão minha foi um momento divertido, mas que o filme ficou pra mim com um indisfarçável ranço macartista, isso ficou. Não é à toa que Charlston Heston é hoje o presidente da National Rifle Association. Cruz credo, vade retro!