sexta-feira, maio 26

OLHAI OS LÍRIOS DO CAMPO

Quando o jornal era na rua do Imperador, tinha um louco que morava debaixo de uma marquise de um hotel abandonado bem em frente à portaria. Toda vez que ele me via, invariavelmente me pedia um real. Aconteceu certo dia de eu estar atrasado ou irritado, ou ambos, e não dei o tal real. Alguns dias depois, quando passei por ele, fez cara de amuado e não me pediu nada. Fiquei com pena e disse: "-Olha, toma aqui o teu real." E ele: "-Quero esse não. Eu quero aquele que você não me deu."
Achei a resposta engraçadíssima, e repeti a anedota pros meus colegas da redação. Mas depois, refletindo, me dei conta da profundidade filosófica da coisa. Só um louco poderia dar uma resposta tão absurdamente sublime. Ele resumiu aí, sem querer, toda a inquietação e insatisfação da condição humana. Tudo o que queremos da vida é aquele real que ela não nos deu. Aquele grande amor da infância ou adolescência que, claro, foi frustrado, passamos o resto da vida a exigir que o destino nos devolva. Elvis quando era criança ficou em segundo lugar num concurso de canto na escola. É provável que ele tenha passado o resto da vida tentando ganhar esse concurso, e terminou se transformando em um mito e em um deus. Ninguém me tira da cabeça que o Brasil só é penta, e daqui a um mês provavelmente será hexa, porque perdeu a Copa de 50 dentro de casa. Se tivesse ganho, seria no máximo bi, como a Argentina. Estamos até hoje numa eterna prorrogação tentando virar aquele jogo dentro do Maracanã. Entendeu agora, Dona Vida, porque sou um eterno insatisfeito? Não importa o que você me dê; escutai os loucos das marquises: eu quero aquilo que você não me deu.

sábado, maio 20

SALTO ALTO EM PARIS

Acabei de ver o "Código da Vinci". Entra em campo com o mesmo salto alto religioso do "Senhor dos Anéis", ou seja, um filme feito para os já convertidos pelo livro, e não para arrebanhar novos adeptos. Morno, morno. Os atores mumificados recitam fielmente o evangelho segundo Dan Brown, com um ou outro caco pseudohumorístico aqui e ali. Até a trilha sonora segue o mesmo catecismo do "Senhor dos Anéis" de ser linear e inalterável, não importa o que esteja acontecendo na tela, seja uma reunião de pessoas conversando, uma perseguição de carros em alta velocidade, um casal se beijando ou um tiroteio. Como a dizer: ora, você vai adorar esse filme de qualquer jeito porque você adorou o livro, portanto eu não preciso me esforçar muito pra acentuar as intenções narrativas das cenas com uma trilha sonora adequada, trate de se emocionar aí na cadeira e fim de papo. Mas para não dizer que não falei de flores, o elenco foi perfeitamente escolhido, justamente por ser o mais óbvio: O eterno nerd Tom Hanks pra ser o historiador, Alfred Molina pra ser o bispo espanhol, Jean Reno, o José Lewgoy da França, como o delegado francês troglodita, e aquela atriz francesa bonitinha mas insossa que eu não sei o nome pra ser a Sophia. Só o monge albino que não bate bem com o imaginário do leitor, era pra ser mais monstruoso, e pintaram um mauricinho bonitinho de branco e mandaram ele se fingir de louco religioso. Não colou e só serviu pra contribuir pra mornice do filme. Mais uma vez, saudades do "Nome da Rosa", no caso, o filme de Jean-Jacques Annaud.

terça-feira, maio 9

LIVRO SEM ECO

Acabei de ler o Código da Vinci de Dan Brown. Sem dúvida o ritmo é vertiginoso, toda a ação das quase 500 páginas se passa numa só madrugada. Apesar do estilo do escritor ser meio naive, parecendo um Sidney Sheldon querendo ser gente grande, a trama é razoavelmente bem urdida, às vezes previsível e às vezes surpreendente. Brown bombardeia o leitor com um colossal avalanche de informações, boa parte delas jogando verde pra colher maduro, como no caso dos pergaminhos do Mar Morto, os quais nem de longe falam de Jesus em nenhum momento, tratam-se de fragmentos de cópias do Antigo Testamento. Tem, claro, seu mérito como entretenimento, um livro para se ler comendo pipoca. Como estímulo intelectual, porém, é inócuo, incolor, insípido e inodoro, porque as duas premissas em que se baseia para justificar a trabalheira do autor em escrevê-lo são fragílimas e inverossímeis, apenas um sopro e elas se dissipam. Senão vejamos:



1-A Igreja Católica é regida por homens, e portanto, dedicou-se a sabotar e esconder o conceito de "sagrado feminino" desde o início do cristianismo:

Hã?!? Como assim? A Igreja Católica pode ser acusada de todas as heresias e vilanias possíveis e imagináveis, exceto exatamente essa. Nunca em nenhuma religião da história da humanidade a figura da mulher foi tão exaltada, sublimada, adorada e venerada como no catolicismo. Só que o objeto de tanta veneração não é Maria Madalena, como queria Brown no seu livro, mas Maria, a mãe de Jesus. Chegam ao extremo de dizer que ela é a Rainha do Céu e Mãe de Deus (no caso um evidente disparate teológico: Maria é a mãe de Jesus enquanto homem, pois se Deus é eterno, não tem princípio nem fim, portanto não pode ter mãe).
A maioria esmagadora da iconografia católica é composta de imagens de Maria, ou sozinha ou com o Menino Jesus; ela foi alçada à condição de intercessora junto a Deus (Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós, pecadores, agora e na hora da nossa morte, amém.); incontáveis igrejas católicas no mundo inteiro foram erguidas em sua homenagem, etc. Brown malandramente empurra a Virgem Maria pra debaixo do tapete, em momento algum no seu romance pseudofeminista cita seu nome, só diz assim meio de passagem que "há pessoas que querem acreditar que Jesus nasceu de uma virgem de um modo literal...", e daí não passa.

Brown força a barra pra confundir mulher com sexo, e fazendo isso resume a mulher à condição de mero receptáculo do sêmen, ou cálice, como ele diz no romance, e essa seria a essência do "sagrado feminino". As feministas deveriam ficar furiosas. E ele diz que as religiões antes do Cristianismo eram feministas e valorizavam a mulher. É falso: no judaísmo, só para citar a imediatamente anterior ao cristianismo, as mulheres nem entravam nas sinagogas, ficavam do lado de fora, e não podiam ensinar teologia. No catolicismo as freiras entram nas igrejas, dirigem escolas e ensinam teologia.
Brown diz que a Igreja inventou o mito de Eva sendo quem induziu Adão ao pecado para acusar e oprimir a mulher. Foram os cristãos que escreveram o Gênesis?!? E eu que jurava que tinha sido Moisés.

Enfim, é chute pra todo lado, os acadêmicos e teólogos católicos devem estar se contorcendo de rir, enquanto fingem que estão indignados. Se ele quisesse realmente irritar o Vaticano, era só dizer que a Igreja tem um fetiche obsessivo com a virgindade de Maria e não divulga que a Bíblia cita em pelo menos sete passagens que Jesus tinha vários irmãos e irmãs, (Não é este o carpinteiro, filho de Maria, irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão? e não estão aqui entre nós suas irmãs? E escandalizavam-se dele. Marcos 6:3) filhos carnais de Maria e José, sendo Jesus, claro, o primogênito. E não precisa apelar para pergaminhos do Mar Morto ou obscuros evangelhos apócrifos, está lá na Bíblia Canônica Católica mesmo, que o padre usa todo domingo na Igreja.
(Vide também: João 7:1-13; João19:26-27; Lucas8:19-21; Mateus 12:46-50; Marcos 3:31-35; Gálatas 1:19)



2- Era impossível Jesus não ser casado, pois todo judeu tinha que casar:

Quem disse isso? Falso como uma nota de três dracmas. O judaísmo era composto de muitas seitas, e algumas delas estimulavam o celibato: os Essênios, por exemplo, eram celibatários. O apóstolo Pedro era casado, uma vez que o Novo Testamento registra a cura da sogra dele por Jesus. Dizem as más línguas que foi por isso que ele negou Jesus três vezes...
Já o apóstolo Paulo, judeu e fariseu extremamente ortodoxo, era celibatário. Parece que todo judeu que se achava incumbido de alguma missão especial achava melhor não se distrair com assuntos domésticos para melhor se dedicar ao trabalho do Senhor. O próprio apóstolo Paulo aconselha o celibato para os cristãos mais piedosos (Quero que todos os homens sejam tais como também eu sou; no entanto, cada um tem de Deus o seu próprio dom; um, na verdade, de um modo; outro, de outro.8 - E aos solteiros e viúvos digo que lhes seria bom se permanecessem no estado em que também eu vivo.9 - Caso, porém, não se dominem, que se casem; porque é melhor casar do que viver abrasado. I Coríntios 7:7-9). Os padres católicos seguiram a primeira parte do conselho; os pastores protestantes, a segunda, e desse modo todo mundo ficou feliz.
Os evangelhos narraram cada evento da vida de Jesus com riqueza de detalhes, narraram todas as festas religiosas, comemorações e casamentos que ele compareceu, e onde geralmente pregava ensinamentos e realizava milagres. Iriam esquecer de narrar justamente o casamento dele? E pensar que todo o livro de Brown se baseia nisso. E ninguém mais propício a abraçar o celibato do que o judeu Jesus, afinal ele tinha uma missão e tanto. Brown diz que Jesus nunca disse que era divino. De fato, Jesus não disse que era só "divino", disse, e muitas e muitas vezes pra quem quisesse ouvir, que era o próprio Deus encarnado em forma de gente, e uma vez quase foi apedrejado por causa disso (João cap. 8). E mesmo se ele tivesse casado, seria irrelevante para estabelecer ou não a sua divindade. Afinal ele tinha um corpo humano, e comeu, bebeu e chorou. Tinha todas as funções normais que todo mundo tem, inclusive as sexuais. Ele só não poderia adulterar, pois para salvar a humanidade teria que ser crucificado sem pecado.

Brown diz que Jesus confiou todo o poder da Igreja para a esposa e braço direito Maria Madalena, e não a Pedro. De onde ele tirou isso, nem Deus sabe. Se ele quisesse realmente chatear o clero, ele diria que Jesus não confiou a igreja nem a uma e nem ao outro, mas a Paulo, que foi quem disseminou o evangelho por toda a Europa e Ásia, vide os Atos dos Apóstolos. Pedro ficou lá quietinho no lugar dele de sempre, com a mulher, os filhos e a sogra. Quietinho até certo ponto, porque um dia fez besteira e levou um puxão de orelhas de Paulo (Gálatas 2:11), porque "se tornara repreensível". Manda quem pode e obedece quem tem juízo. Paulo é quem viajou à Roma e lá foi preso, e não Pedro. Deveriam mudar o nome da praça do Vaticano pra "Praça São Paulo".

Sem contar que Brown estranhamente omite o nome do frade franciscano e matemático Luca Pacioli, que foi o professor que ensinou perspectiva e proporção a Leonardo da Vinci em Milão em 1497. Ficaram amigos e Leonardo ilustrou o seu livro De Divina Proportione (se deu bem, hem, Luca?), e foi a partir daí que surgiu o desenho do Homem Vitruviano citado no início do romance. O historiador Robert Langdom deveria saber disso, mas Brown resolveu sugerir que Leonardo inventou do nada por si próprio o conceito de proporção divina usado nos seus trabalhos, certamente para dar uma aura mais mística ao gênio.

Mas pelo menos para alguma coisa o Código da Vinci serviu: me deu uma saudade danada do Nome da Rosa de Umberto Eco, que imediatamente comecei a reler.