quinta-feira, janeiro 20

RUDEMENTE INTERROMPIDO

Foi só eu começar o meu, segundo Mardoux, anacrônico blog, que os deuses do Olimpo resolveram conspirar para interrompê-lo. Logo eu, que resisti até o derradeiro momento, e por pouco não vira derradeiro mesmo. Exageros à parte, pois não é que, à semelhança de Prometeu, o abutre do destino houve por bem de pinçar-me as vísceras, justamente no dia seguinte à minha primeiríssima postagem. Ainda bem que ele não cismou com o meu fígado, o príncipe dos orgãos, mas com o reles e descartável apêndice. Fui pra faca e o apêndice foi-se. Faca assim como quem diz, porque a coisa foi mais sofisticada: videolaparoscopia. Não desconfiava da existência da mesma, mas agora entrou definitivamente pro meu vocabulário. Descobri também que já entrou há muito tempo no de outras pessoas, alguns já a tratam sem a menor cerimônia: -Ah, o teu foi láparo?
Para os pobres mortais que ainda não tiveram a honra de ter o seu apêndice deletado com essa técnica, trata-se de três furinhos, um na virilha, outro no umbigo e um terceiro no lado esquerdo da barriga, o qual não entendi, porque come se sabe os apêndices moram no lado direito de quem sai. O do umbigo é por onde entra uma câmera de vídeo e serve pra inflamar depois e fazer você ficar com febre e a barriga inchada. O da virilha deve ser por onde entra o ar pra inflar a barriga, pra ficar tudo soltinho na hora de cortar, segundo fui informado, e te dar dores gasosas depois que fecham. Esses diminutivos, furinhos, soltinhos, nunseiquezinhos, faz parte do jargão eufemístico das enfermeiras, acho que pra ajudar a diminuir o sofrimento do freguês. E o do lado esquerdo, como foi o maior de todos, calculo que deva ter sido por ali que o danado saiu, embora continue sem entender porque furaram tão longe, mas devem ter lá suas razões. Até que não doeu tanto a apendicite, em comparação com uma tal de uma sonda que me enfiaram na uretra. É, homens que me lêem, podem ficar arrepiados. Como o furo da virilha é feito na altura da bexiga, a mesma tem que ficar sendo esvaziada constantemente durante a cirurgia, que no meu caso foi com anestesia geral. Quando a gente finalmente acorda, beleza, a dor do apêndice sumiu, até que você nota um certo peso incômodo nas suas partes mais pungentes. Depois, não só o peso, mas algo que se estende além fronteiras pra cima da maca. Aí explicam que é uma sonda que tem que ficar ali porque você não vai poder ficar se levantando pra fazer xixi. Não duplipensei: peguei o celular imediatamente e implorei pro meu cirurgião mandar o enfermeiro tirar aquilo de dentro de mim. E mais, descobri depois, não estava doendo, só incomodando. Quando ele tirou, dizendo que ia doer um pouquinho, foi como tirar um espetinho de churrasco em brasa de dentro do meu pau, que a essas alturas já estava reduzido a um melancólico pipiu. E como eu estava a quatro dias sem comer nem beber, numa tal de Dieta Zero, só tomando soro e fazendo exames, a concentração de ácido úrico na bexiga fez com que eu mijasse lava incandescente durante uns bons dois dias. E quando finalmente resolveram que era hora de eu voltar a me alimentar, me chega a nutricionista com uma xícara de chá de erva-doce e me diz que é pra tomar um copinho de plástico branco, daqueles de cafezinho, a cada dez minutos. Mandei ela mentalmente pra puta que pariu, galguei pela escadaria os quatro andares que me separavam do restaurante dos visitantes, já que os elevadores eram fortemente vigiados pela tropa de choque dos enfermeiros de plantão, e enchi a cara de suco de laranja. Vai matar o diabo, desgraçada.

domingo, janeiro 9

Play it again, Sam!

Calma, indóceis cinéfilos, eu sei que essa fala não existe no filme, já sabia antes de comprar o dvd comemorativo dos 60 anos, assim como "Elementar, meu caro Watson!" também não existe nos livros. E por falar em Sherlock, eu estava ainda outro dia trocando e-mails com uma prendada donzela, igualmente cinéfila e indócil, a propósito de presentes de amigo secreto e da invasão e conspiração gay na mídia em geral e na imprensa escrita em partircular, onde atualmente pontificam Urbi et Orbi.
Cruziscredus, essa conspiração está realmente em curso? Esperemos que não, mas estávamos conversando sobre ela de qualquer forma. Eu contava pra ela o belo presente que tinha ganhado do meu amigo secreto nesse fim de 2004, que aliás foi uma amiga. Pois essa amiga secreta, inadvertidamente, sem dúvida, por ser ela mulher, me deu um grande prazer másculo-cinematográfico-literário ao revelar a sua identidade com um dvd do último episódio de Jornada nas Estrelas VI - A Terra Desconhecida. Forçoso é reconhecer que o título em inglês é bem mais bonito, por remeter imediatamente ao "Undiscovered Country" de Hamlet, que Brás Cubas cita no seu primeiro capítulo, para onde se retira sem as ânsias e dúvidas do moço príncipe, mas pausado e trôpego, como quem se retira tarde do espetáculo.
Mas onde estávamos mesmo? Ah, sim. Eu dizia a essa minha penpal virtual que a certa altura de uma investigação de sabotagem e assassinato, Dr. Spock cita a famosa frase de Holmes: "Depois de eliminar o impossível, o que restou, por mais improvável que seja, deve ser a verdade." Spock, como todos os trekkers estão de orelhas pontudas de saber, é um extra-terrestre que nasceu no planeta Vulcano, e que cuja raça vulcaniana tem como principal característica ter a alma completamente desprovida de emoções, funcionando apenas e tão somente com a razão. Só que Spock citou essa frase não creditando a Holmes, mas a um suposto ancestral dele próprio. E ele poderia ter citado a fonte, pois o ambiente de Star Trek não é um universo alternativo, ao contrário de Star Wars e Senhor dos Anéis, mas esse mesminho aqui que agora estamos, só que no futuro. Tanto é que Shakespeare é citado nominalmente e declamado no filme todo, inclusive no título.
Até aqui temos o prazer cinematográfico e o literário, mas cadê o másculo? É que essa é uma piada essencialmente do inner circle masculino, um oásis e um refrigério para o espírito nesse mundo cada vez mais cheio de frescuras. O diretor mostrou que conhecia o seu público e mandou um recado cifrado para ele. Mulheres e gays não acompanharam fanaticamente Star Trek na televisão na infância e nem assistem no cinema. Não tem romance, é coisa de macho racional. Também não leram Sherlock Holmes na adolescência, que é coisa idem. Ou se leram, não assistiram, se assitiram, não leram, e se fizeram ambos, não entenderam a piada, e se entenderam, não riram. Se você está achando que eu sou um machista preconceituoso, não poderia estar mais perto da verdade. Por acaso já leu o nome desse blog?
Liguei dias depois pra um amigo meu, o qual não via há anos, pra desejar um Feliz 2005, e quando comecei a contar esse trecho do filme ele me interrompeu às gargalhadas, já tinha visto e já tinha até imaginado a cena de Sherlock sendo depositado no berço por um ET vulcaniano. Esse meu amigo também é fã incondicional de James Bond, esse outro ícone ideal do imaginário masculinista, que, assim como Dr.Spock, Sherlock Holmes e Rick Blaine, não se deixam dominar pelas emoções e a fria e calculista razão está sempre no comando. Sempre, até o momento em que Ilsa Lund entra no Café Americáin e bagunça tudo outra vez. Aí, só nos resta encher a cara de cachaça e balbuciar, perplexos, como Rick: "Of all the gin joints, in all the towns in all the world, she walks into mine!" Essa fala existe de verdade.