sábado, setembro 30

MAIS UMA PARA A COLEÇÃO

Mais uma para a coleção do "Não disse, mas deveria ter dito":

Recebi de Ciça um e-mail pauerpôintico de citações famosas e a "O inferno não tem a fúria de uma mulher desprezada" veio atribuída a Dante Alighieri. Como sempre pensei que essa frase era de Shakespeare, fui perguntar ao nosso amigo Guga, e ele disse que nem é de um e nem de outro: é de um tal de Willian Congreve, uma fala da peça dele de 1697 "The Mourning Bride":

"Heaven has no rage like love to hatred turned/ Nor hell a fury like a woman scorned."

Mas que coisa, hein, Mardy...?

terça-feira, setembro 26

ENTREVISTA COM O CHARGISTA

Olá Miguel Falcão,

Eu sou Diego Gouveia, estudante do 7º período de Jornalismo da Universidade Federal de Pernambuco. Na disciplina de Redação Jornalística 4, a professora Wilma Morais pediu que fosse criada uma revista com o tema de interesse do aluno. Meu grupo, composto por seis outros estudantes, escolheu o humor no jornalismo como tema. Entre as matérias que a gente propôs, uma trata da ética nas charges, como havia dito a você por telefone. Quando a revista, Traço, nome que nós colocamos, estiver pronta, a gente pode combinar de levar para você dar uma olhada. Desde já, agradeço sua atenção.




Perguntas:

1-No início de fevereiro de 2006, o mundo entrou numa convulsão com a publicação de cartuns mostrando o profeta Maomé, de forma depreciativa e de forma positiva. A republicação das "Faces de Maomé" veio no jornal Jyllands-Posten da Dinamarca. Diversos protestos foram realizados por comunidades mulçumanas, mas muitos jornais decidiram publicar esses cartuns em nome da liberdade de imprensa. O que você achou da reação das comunidades mulçumanas?

Achei absurda. Por mais ofensiva que fosse a charge, eles não tinham nenhum direito de ameaçar ninguém de morte. Existem outras maneiras de protestar, pra dizer o mínimo. Qualquer pessoa, grupo ou comunidade que se autodenomine como representante ou defensor único e absoluto de Deus é sempre desprezível. Eles poderiam ter acionado juridicamente o jornal por crime de discriminação religiosa, que acredito está previsto no código penal da Dinamarca, e não ficar oferecendo prêmios pela cabeça do cartunista. Isso é de uma estupidez pré-histórica (eu ia dizer medieval, mas a chamada Idade das Trevas nem é tão tenebrosa assim), e o fato de se tolerar isso como sendo “normal” dos povos muçulmanos apenas banaliza e diminui a importância dos povos do Oriente Médio, que são o berço da civilização.

2- Há limites na hora de criar uma charge?

Claro que sim. Pra tudo tem limite. Mas o chargista não “cria”, simplesmente, uma charge do nada. O cartunista cria um cartum do nada, o quadrinista escreve e desenha uma história em quadrinhos do nada, mas o chargista é dependente do fator externo. Ele opina com o seu desenho humorístico sobre um fato concreto que aconteceu na vida real, alheio ao seu controle. Um chargista não pode criar uma notícia para justificar a sua charge. Se, por exemplo, na opinião dele Lula sabia tudo sobre o mensalão, tem que existir primeiro um mensalão, e esse mensalão tem que ter alguma relação com Lula. Ele, por outro lado, não poderia acusar Lula de ter derrubado as Torres Gêmeas de Manhattan, porque a imprensa não veiculou, pelo menos até o momento, nenhuma relação de Lula com o terrorismo internacional. Então o limite é justamente esse fato concreto. Se a opinião dele sobre esse fato concreto corresponde à realidade ou ele está equivocado, aí já são outros quinhentos. Ele é um colunista do jornal como outro qualquer, ele assina a sua coluna e é pago para opinar. Evidente que o impacto da sua coluna é bem diferente de uma coluna opinativa de texto. Além do óbvio apelo à atenção do leitor através do desenho caricatural, ele concentra todo o seu poder de fogo em um único assunto, não dilui a coluna em uma miríade de temas como o colunista de texto. Então quem é alvo de uma charge se sente bem mais atingido. Poucas coisas são tão intoleráveis ao ser humano como ser ridicularizado em público, e ainda mais sendo desenhado de modo ridículo numa página impressa de uma mídia de grande circulação. Uma charge dói mais.

3-E da decisão dos jornais em publicar esses cartuns?

Decisão corretíssima. A não publicação seria o mesmo que aceitar chantagem. Aquele que se dobra ao chantagista nunca sabe quando terá que parar de fazer concessões, porque sempre haverá uma nova chantagem. Então é melhor cortar logo de primeira.

4- O ministro francês das Relações Exteriores, Philippe Douste-Blazy, comentou que espera que a liberdade de imprensa seja exercida em um "espírito de tolerância". Você acha que existem limites durante o processo criativo? O que determina o que pode e o que não pode ser publicado?

Essa pergunta é muito ampla, mas eu vou tentar me ater ao âmbito da charge. O que me determina sobre o que eu devo ou não desenhar é a minha opinião sobre a veracidade do fato. Se eu não tenho certeza, por exemplo, que Humberto Costa estava envolvido com os vampiros, eu faço uma charge com ele sendo importunado por morcegos, porque é fato que esse assunto tem atrapalhado a campanha dele, mas não faço uma charge com ele vestido de Drácula, porque isso seria afirmar que ele é culpado, e naquele momento eu não tinha certeza se ele era culpado ou não. O jornal provavelmente publicaria tanto uma como outra, mas a minha consciência me acusaria de estar talvez incriminando um homem inocente. IN DUBIO PRO REU.

5- Já aconteceu de você publicar uma charge e no outro dia alguém ligar ou escrever reclamando do trabalho?

Muitas vezes. Isso acontece com uma certa freqüência, tanto pra elogiar como pra criticar. Ainda outro dia um leitor me escreveu reclamando que eu só me inspirava pra fazer charges contra Lula. Fiz ver a ele que tinha feito mais de dez charges nas últimas semanas com a campanha pífia de Alckmin, e o fiz notar também que, afinal de contas, Lula não só é o atual presidente da República como o partido e o governo dele geram uma avalanche de escândalos a cada mês, dá mais trabalho escolher o mote do que procurá-lo. Mas assim mesmo agradeci a mensagem e disse que a vigilância dos leitores é importante pra que a gente nunca deixe de ser imparcial. O que é verdade.
Mas a história que eu mais gosto de contar é a de um deputado estadual que me desafiou para um duelo. Mas um duelo mesmo de verdade, do tipo faroeste ao pôr-do-sol, com revólver e tudo, ele chegou a me dizer no telefone para escolher as armas. Tudo isso porque, no início da década de 90, houve uma epidemia de cólera no Recife, e a orientação médica para a população é que se lavasse os alimentos numa solução diluída de água sanitária. Tanto bastou para que começasse a surgir nos bairros da periferia uma distribuição gratuita de água sanitária para a população de baixa renda com os “santinhos” dos vereadores e deputados convenientemente colados nos rótulos das garrafas. Aí eu fiz uma charge que era o seguinte:
Uma dona-de-casa chega num armazém de subúrbio perguntando se tinha água sanitária “LADRÃO”.
Aí o dono pergunta se não seria água sanitária “DRAGÃO”.
E a mulher: “-Não, é ‘LADRÃO’ mesmo, é daquela que tem a foto dos políticos.”

E olhe que a charge nem era pessoalmente direcionada a ele, mas parece que a carapuça serviu.

6- Para você a liberdade de expressão depende dos direitos das outras pessoas? Meio que: sua liberdade acaba onde a minha começa?

Sim, claro. Aqui cabe o velho clichê : “Não confundir liberdade com libertinagem.”
Milhões de dólares trocam de mãos todos os dias ao redor do mundo através de processos por difamação e calúnia pela mídia. Acusou, tem de provar. Se não tem prova, não acuse. Porque uma pessoa é uma figura pública não significa que ela não tenha direito à privacidade. É uma linha meio tênue, mas é melhor seguir o clássico aviso do Detran: “NA DÚVIDA, NÃO ULTRAPASSE”. Vai evitar um monte de acidentes de percurso.

7- Algum trabalho, que você tenha gostado muito de fazer, não foi publicado por que o conteúdo dela não era interessante para o Jornal?

Sim. Já tive milhares de charges vetadas, claro, mas uma que me lembro que gostei especialmente de fazer e que não saiu foi a de João Paulo vestido como o Anjo Gabriel, de espada de fogo na mão, com um caju mordido na mão a título de maçã, expulsando Jarbas e Roberto Magalhães do Paraíso, na ocasião da primeira eleição de João Paulo. Só que Jarbas e Roberto Magalhães estavam despidos de Adão e Eva, aí o jornal achou melhor não publicar para evitar conotações maliciosas. Posso afirmar que, nesse caso, não foi por causa de nenhuma conotação política, publiquei na época charge muito pior tanto com Roberto Magalhães quanto com Jarbas, e além do mais, eles já tinham perdido a eleição mesmo. O jeito foi publicar no Papa-Figo, como pôster central colorido. Mas para o Papa-Figo, até que ficou bem leve...

8- O que você gostaria de publicar e nunca conseguiu?

Nada. Tudo o que quis publicar, ou desenhado ou escrito, eu consegui. Se não no Jornal do Commercio, no Papa-Figo.

9- Aonde fica a ética na charge?

Fica em todo lugar. O ato de desenhar uma charge é uma atividade essencialmente ética e moral. É quase um sacerdócio. É até engraçado de dizer, mas um chargista não pode ser corrupto. Já pensou, um chargista envolvido no mensalão? Seria o cúmulo do ridículo. Eu não sei os outros chargistas, mas eu pessoalmente evito até de fazer trabalhos avulsos de marcas, panfletos e ilustrações para políticos. E em ano de eleição aparecem pedidos aos montes. Quando o cara é algum amigo meu, justifico que, com a competência política que ele tem, ele em breve será presidente da República e eu não vou poder fazer charges contra ele porque estou na sua folha de pagamento. Ele fica todo satisfeito e nunca mais me pede nada. O chargista é o ombudsman da humanidade. É ele quem expressa a indignação dos impotentes diante das injustiças dos poderosos, e de uma maneira lúdica e engraçada, separa o joio do trigo. É o herói sem revolução, o mártir sem sangue. Ele personifica a luta do bem contra o mal através do humor gráfico, é um São Jorge vestido de palhaço espetando o dragão (ou o ladrão) com uma caneta nanquim.

10- Qual a charge mais ousada que você lembra ter publicado?

Na minha opinião, foi uma que fiz contra a própria imprensa. Quando João Paulo trouxe Sandy & Júnior para se apresentar no Marco Zero numa festividade de fim-de-ano, toda a imprensa, inclusive eu, caiu de pau em cima dele por causa dos gastos inúteis e excessivos com frivolidades desse tipo. Uma semana depois, a Prefeitura do Recife promove a tradicional boca-livre de fim-de-ano para os jornalistas, que é uma grande festa com bebida e comida à vontade, bandas de rock, dj’s, etc. Aí eu publiquei uma charge no próprio Jornal do Commercio com a caricatura de João Paulo falando mais ou menos isso:
“-Engraçado, eu não vi sair nada na imprensa falando contra o mau uso do dinheiro público na festa de fim-de-ano que a Prefeitura faz pros jornalistas.”
Eu, por mero acaso, não fui pra essa festa, mas confesso que poderia ter ido. No outro dia, alguns colegas de redação me parabenizaram pela charge e outros passaram semanas sem falar comigo.

11- E a de outro chargista?

A de outro chargista foi a de Libório, excelente chargista e caricaturista que trabalhou comigo no JC em 1989 e no setor de Imprensa do Sindicato dos Bancários em meados da década de 90. Não chegou nem a ser charge publicada na página de opinião, foi numa capa do Caderno C. Acho que foi a propósito da Semana Santa, não lembro bem, mas ele fez um Cristo descendo da cruz e dizendo ao centurião pra guardar o lugar dele ali que ele ia fazer xixi. No outro dia tinha uma procissão de padres e bispos na sala do editor geral pedindo a cabeça dele (em sentido figurado, ainda bem...).

12- O que mais te impressionou nesses anos de trabalho?

A banalização da corrupção, a ponto de não se ter mais como critério de escolha a honestidade.

13- Qual foi a charge que você olhou e pensou: Poxa, como foi que o autor teve coragem de publicá-la?

Não lembro de nenhuma específica, mas geralmente eu penso isso quando a charge é muito ruim.

14- O que você acha quando alguém manda carta ou e-mail reclamando de uma charge sua publicada?

Eu gosto muito e dou retorno para todas, tanto às críticas quanto aos elogios.

15- Você se arrepende de ter publicado alguma coisa?

Sim. Geralmente quando sou mal interpretado por algum grupo minoritário. Lembro de uma de Collor vestido de judeu e costurando alianças a torto e a direito, e dizendo “Fazemos qualquer negócio”. Os judeus protestaram, e com razão. Mas eu não sou anti-semita. Outra, já mais recente, fiz João Paulo como um macaco com a mão num pote de mel, com uma legenda dizendo “Macaco que nunca come mel, quando come se lambuza.” O que eu quis dizer é que o PT tinha passado todo esse tempo fora do poder, e quando assumiu, se deslumbrou. Era uma charge contra o nepotismo que existia na primeira administração de João Paulo. Mas os movimentos negros entenderam que eu estava chamando João Paulo de macaco porque ele era negro. Eu não sou racista e não me toquei para essa alusão pejorativa, aliás, até porque eu nem acho ele tão negro assim, quando muito, moreno, mas vá dizer isso a um militante da causa negra.
Por outro lado, gosto quando os rubro-negros acham que eu sou alvirrubro, os alvirrubros acham que eu sou tricolor e os tricolores e alvirrubros acham que eu sou rubro-negro. Se eu estiver numa prancheta fazendo charge esportiva, todos têm a mais absoluta razão.

16-Qual vai ser o futuro da charge e da ética nela?

O futuro da charge depende do futuro do País. Se tivermos outra ditadura militar, que Deus nos livre, ela será muito reprimida. Se o Brasil se transformar numa Suécia, com tudo funcionando direitinho do dia pra noite, ela ficará meio insossa e haverá desemprego em massa de chargistas. Tá vendo os chargistas dinamarqueses? Tiveram que ir procurar sarna pra se coçar lá no Islã. E bem que acharam.
Mas entre um e outro extremo de retrocesso e progresso, teremos ainda muitas charges a desenhar, e sempre com toda a ética possível, porque sem ética não tem graça.

quinta-feira, setembro 21

TEMPUS FUGIT TEMPORA MUTANTUR

Toda vez que vou pesquisar alguma coisa no Google eu fico deveras intrigado com aquela dica:

Dica: Ganhe tempo teclando Enter ao invés de clicar em "Pesquisar"


Eles poderiam incluir também na dica uma sugestão sobre como melhor aproveitar o milésimo de segundo que você ganhou entre o clic e a teclada:

1- Piscar o olho.
2- Soprar a franja para o alto, se você tiver uma.
3- Viajar na velocidade da luz para o passado, para o tempo em que os telefones eram pretos, as geladeiras eram brancas, as televisões eram em preto e branco e não existiam computadores nem dicas idiotas como essas.

segunda-feira, setembro 18

PER SOGNI E PER CHIMERE E PER CASTELLI IN ARIA

Pouco antes de eu entrar de férias o editor do Caderno C me pediu uma caricatura de Machado Assis como dramaturgo. Fiz com prazer e com capricho, claro, pois é o meu autor predileto. Não sou tão versado nas suas peças como o sou nos seus romances, mas o título de uma delas sempre me chamou a atenção:
"Queda que as mulheres têm para os tolos".
Fiz alguma brincadeira sobre esse título com Fabiana Moraes, que era quem estava fazendo as entrevistas para a matéria (e cujo blog consta aí ao lado como AnnaBlackNery), e ela respondeu, entre galhofeira e pensativa: -Queda que as mulheres têm para os vagabas, rapaz... para os vagabas...!
Isso me remeteu imediatamente a uma cena da peça "Um sábado em 30", comédia de Luiz Marinho, quando Seu Severiano pergunta a Quitéria se ela preferia um homem trabalhador e honesto como ele ou um pilantra. E ela responde:
"-Um pilantra, Seu Severiano... um pilantra!"
Lembro também de uma cena de um filme de Woody Allen, não sei se "Play it again, Sam" ou "Annie Hall", Biamorim deve saber, em que a personagem dele se queixa que a esposa o deixou e fugiu com um motoqueiro e justificou que era porque ele a fazia rir. E Woody dizia: "-Ela quer passar o resto vida passeando de moto e gargalhando, passeando de moto e gargalhando...".
Jorge Amado imortalizou o tema em "Dona Flor e seus dois maridos". Flor casa com o honesto, mas o vagaba Vadinho continua assombrando as suas fantasias.
Não poderíamos esquecer de citar o clássico dos clássicos do confronto entre o cínico e o idealista em disputa pelo amor de uma mulher: Casablanca. Ingrid só vai embora no avião com o marido fiel depois de ser convencida a muito custo pelo vagaba Bogart.
Acho que cheguei a ponderar com Fabiana que talvez Machado quisesse dizer exatamente isso com o "tolo" do título, ou seja, tolo, vagabundo, pilantra, seria tudo a mesma coisa. De qualquer forma, não constitui exatamente uma novidade essa queda feminina pelos vagabas.
Qual seria a explicação para isso? Não sei. Com a palavra, as leitoras. Mas como não poderia deixar de ser, tenho cá minhas indefectíveis teorias, as quais são apenas hipóteses:

1- Sensação de liberdade: um vagaba supostamente pega menos no pé, pois ele próprio não é flor que se cheire.
2- Emoção da aventura: os vagabas são mais imprevisíveis e conduzem a vida de forma dissoluta e irresponsável.
3- Símbolo de status: os vagabas geralmente são muito populares e ficar com ele aumenta o prestígio no universo em que circulam.
4- Competição: como os vagabas são os mais cobiçados, ficar com ele significa uma vitória sobre as outras mulheres.
5- Auto-estima deficiente: Os vagabas geralmente não estão nem aí para a mulher dele, pois ele tem opções de sobra, o que gera um ciclo vicioso, quanto mais ela é desprezada, mais se apaixona. Naturalmente nesse caso o oposto também é verdadeiro, quando ela finalmente consegue domesticar o vagaba, ele perde o encanto e ela sai à procura de outro que lhe dê o devido desprezo.

É claro que isso é um compêndio de generalizações, há ainda muitas sutilezas na questão. Como, por exemplo, quando um mesmo cara pode ser um interessante e excitante vagaba para uma mulher e um enfadonho almofadinha para uma outra, pelo simples fato de estar apaixonado pela segunda e não dar a menor bola para a primeira. Enfim, as possibilidades do espírito humano são infinitas.

quarta-feira, setembro 13

DIA DO SAIO

Férias! Estou de férias! Êêeê! Que maravilha!

Essa alegria toda é só pra não quebrar a tradição dos entradores em férias, mas eu nem acho assim tão ruim ir trabalhar. Pra falar toda a verdade, eu acho é bom. Acho tão bom que, para eterno espanto dos meus colegas, de vez em quando eu volto lá pra dar uma espiadinha, só pra matar a saudade e não perder o costume. Mas não é de bom tom dizer que gosta do trabalho, a gente deve sempre parecer estar remando ao som dos tambores como os remadores de Ben-Hur, sendo cruelmente humilhados pelo chefe carrasco nazista da Gestapo em Auschwitz e chegando ao final do dia exaustos como um Lawrence da Arábia que atravessou a aridez de três desertos. Ontem, apesar de estar oficialmente de férias desde segunda, passei o dia todo na redação. Como gazeei o tradicional show da Má Companhia no Burburinho e fui dormir cedo na segunda, acordei cedíssimo na terça, porque, ao contrário do que boa parte da minha família e amigos pensa, eu não durmo muito, durmo em horas absurdas. Mas só consigo ficar na cama no máximo seis horas, geralmente só cinco mesmo. Pois bem, como tinha ainda uns frilas pendentes, fui pra redação ilustrar, escanear e enviar pela Internet, porque os meus clientes não estão de férias e já começavam a me apertar através de e-mails. Cheguei às seis da manhã lá e só saí bem depois da meia-noite. Liguei luz e ar condicionado de tudo quanto foi editoria, pra quando os meus queridos colegas chegassem já estaria tudo bem fresquinho. Ao todo, eu tive que fazer 13 desenhos coloridos, fora um inesperado preto e branco que Vovô Fernando me obrigou a fazer pra um almanaque que ele publica todos os anos. Vi todos os turnos se sucedendo, os da manhã chegando e indo embora para dar lugar aos da tarde, que por sua vez cederam lugar aos do turno da noite. As pessoas, quando me viam, fingiam irritação:
"-Que é que você está fazendo aqui? Você está de férias! Vá passear, curtir, aproveitar! Mas você vai viajar, não vai? Sair da cidade?"
E eu, para o bem do povo e felicidade geral da redação, mentia dizendo que na cidade eu não fico.

THAT IS THE QUESTION

"Esta é a maravilhosa tolice do mundo: quando as coisas não nos correm bem - muitas vezes por culpa dos nossos próprios excessos - , pomos a culpa de nossos desastres no sol, na lua e nas estrelas, como se fôssemos celerados por necessidade, tolos por compulsão celeste, velhacos, ladrões e traidores pelo predomínio das esferas; bêbados, mentirosos e adúlteros, pela obediência forçosa a influências planetárias, sendo toda a nossa ruindade atribuída à influência divina... Ótima escapatória para o homem, esse mestre da devassidão, responsabilizar as estrelas por sua natureza de bode."

Shakespeare in "Rei Lear" (1605-1606)
Ato I - Cena II: Edmundo


Pelo menos, na minha implicância com a astrologia, eu estou em boa companhia.

sábado, setembro 9

THROUGH THE LOOKING GLASS

NAÇÕES UNIDAS (Agência Reuters) - A cada ano, o mundo tem mais mortes por suicídios do que por guerras e homicídios juntos, mas a maioria dos casos poderia ser evitada, disseram dois especialistas internacionais na sexta-feira.
Entre 20 milhões e 60 milhões de pessoas tentam se matar a cada ano, mas apenas cerca de 1 milhão consegue, segundo José Manoel Bertolote, do setor de saúde mental da Organização Mundial da Saúde em Genebra.
Os suicidas normalmente "estão em situações trágicas, nas quais poderiam ter sido ajudados", segundo Brian Mishara, presidente da Associação Internacional para a Prevenção do Suicídio, que funciona em Gondrin, França.
Os dois especialistas falaram a jornalistas durante um seminário da ONU que marca o Dia Mundial da Prevenção ao Suicídio, no próximo domingo.
As taxas de suicídio poderiam ser reduzidas se os países limitassem o acesso a pesticidas, armas e medicamentos e se dessem melhor tratamento a vítimas da depressão, alcoolismo e esquizofrenia, segundo Mishara.
Cerca de um terço de todos os suicídios no mundo são causados por pesticidas, segundo Bertolote.
Dentistas, veterinários e médicos estão particularmente vulneráveis --não por causa do estresse da profissão, mas por terem acesso a compostos letais e por saberem como usá-los, segundo Bertolote.
Pessoas que perdem o emprego abruptamente são mais propensas a se matarem do que as pessoas que passam longos períodos em condições sociais difíceis, de acordo com ele.
Além disso, pessoas que vivem em países onde a tentativa de suicídio é crime, como Cingapura, Líbano e Índia, são menos propensas a buscarem ajuda caso tenham pensamentos suicidas, por medo de serem punidas pelo governo, segundo Mishara.
"Essas leis não parecem ter um efeito dissuasivo, pelo contrário, dificultam que as pessoas se apresentem para receber ajuda," afirmou.

Ao que Alice, olhando através do espelho, diria:
-Não deixa de ser uma notícia consoladora, pois as pessoas tentam mais morrer espontaneamente do que são forçadas a contragosto. Afinal de contas, a humanidade até que não é tão má assim.

É, concordo.

segunda-feira, setembro 4

ASSOMBRAÇÕES DO RECIFE ANTIGO

Por estar localizado exatamente no coração do Recife Antigo, para o Burburinho aflui toda espécie de personagem noturna, desde os malucos de Olinda até as patricinhas de Boa Viagem, numa alegre e democrática salada de tipos e trajes. Ninguém precisa estar vestido assim nem assado pra ir pra lá; tanto faz chegar de bermuda e sandália como de paletó e gravata, que ninguém vai ligar a mínima. Segunda-feira passada estava eu conversando com Kennedy, ambos fumando perto do balcão, enquanto Leo dava uma canja com a Má Companhia. De repente, surgida do nada, aproximou-se de nós uma bela e encorpada moça, cujo vaporoso vestido de formatura que usava lhe dava mais um ar de jovem senhora. Ela se dirigiu a mim, desculpou-se de estar interrompendo, e perguntou gentilmente se eu tinha uma seda. Meu cérebro já meio turvo de cerveja e a figura insólita me fizeram por um momento delirar e imaginar que ela tinha saído direto de algum casario colonial, depois de ter ficado um século trancafiada como a Emparedada da Rua Nova, e estava nos confundindo com alguma espécie de mascate ambulante, daqueles que vendiam desde espelhos e pentes a retalhos de seda e cetim. Depois de alguns segundos de hesitação, durante os quais eu devo ter ficado com cara de débil mental, olhei para o cigarro que eu segurava e me toquei pra qual era o tipo de seda que ela queria. Sorri, disse que não, ofereci cigarro normal, ela sorriu também, rejeitou, agradeceu e sumiu no banheiro das mulheres.