segunda-feira, abril 23

REQUIEM AETERNAM

Aconteceu de meu querido Tio Lula morrer em 2002, e foi enterrado no mesmo túmulo no cemitério de Santo Amaro junto com o meu pai, que morreu em 1964. Dois anos depois a esposa de tio Lula, minha igualmente querida Tia Dadinha, veio também a falecer e foi enterrada junto do marido, portanto também no túmulo do meu pai. Só que nesse abre e fecha de túmulo, o que ficou lá não foi uma lápide decente, mas uma parede de cimento com nomes e datas riscados a prego. Coisa muito feia. Minha mãe sempre que ia lá no Dia de Finados reclamava muito, e eu disse que ia mandar fazer uma lápide com um escultor amigo meu e botar lá o mais rápido possível.

Como esse mais rápido possível estava ficando pro Dia de São Nunca, minha mãe resolveu mandar fazer com um homem que ela arranjou que ganhava a vida fazendo exatamente isso, lápides para túmulos. Eu ainda tentei intervir de última hora com as mirabolantes opções artísticas que eu tinha tramado com o meu amigo, mas o bom senso familiar houve por bem restringir a duas pequenas máscaras de teatro nas datas de Tio Lula, que era dramaturgo: em vez de estrelinha e cruz, a máscara alegre no nascimento e a triste na morte.

Mas botar lápide em túmulo não é tão simples assim. No cemitério informaram à minha mãe que tem que ter uma licença da Emlurb, que é aquele departamento governamental que administra o recolhimento diário do lixo urbano. Como essa licença de botar lápides em túmulos foi parar sob a responsabilidade da empresa que se encarrega de fazer sumir os detritos nossos de cada dia, não faço idéia. Chega a ser uma licença poética, da poesia de Augusto dos Anjos, bem entendido. Minha mãe chegou lá já com o pedreiro pra tirar as medidas e iniciar as obras, mas doce ilusão. A partir daí estabeleceu-se um processo burocrático de dar inveja, se não a Kafka, pelo menos a Abbott & Costello.

-Eu queria botar a lápide do túmulo do meu marido, e trouxe aqui o pedreiro para tirar as medidas pra fazer a pedra.
-A senhora tem que ter autorização do titular do túmulo.
-Quem está enterrado lá é o meu marido.
-Sim, mas a senhora tem que ter autorização do titular do túmulo.
-O titular do túmulo não é quem está enterrado lá?
-Não. O titular do túmulo é quem comprou o túmulo para quem está enterrado lá ser enterrado lá.
-Mas eu não sei quem comprou o túmulo. Deve ter sido um dos irmãos dele.
-Diga o nome do irmão dele para ver se consta.
-Veja aí Josaphat Marinho.
-Tic, tic, tic, tic, tic, tic, tic, tic, tic, tic. Não está no nome dele.
-Veja Denizar Marinho.
- Tic, tic, tic, tic, tic, tic, tic, tic, tic, tic. Não está no nome dele.
-Veja Luiz Marinho.
- Tic, tic, tic, tic, tic, tic, tic, tic, tic, tic. Não está no nome dele.
-Veja Carlos Marinho.
- Tic, tic, tic, tic, tic, tic, tic, tic, tic, tic. Carlos Marinho consta. Temos que ter a autorização do Sr. Carlos, que é o proprietário do túmulo, para poder botar a lápide.
-Mas Carlos, que era o meu cunhado, já morreu também.
-Ele está enterrado nesse túmulo?
-Não, ele está enterrado em outro túmulo, quem está enterrado nesse é o meu marido e um outro irmão dele, junto com a esposa.
-Irmão do Sr. Carlos ou do seu marido?
-Irmão do Sr. Carlos e do meu marido. São três irmãos. Dois enterrados num túmulo, que pertence a Carlos, e Carlos está enterrado em outro túmulo, que não é esse em questão no qual queremos botar a lápide.
-Então só o irmão do Sr. Carlos pode requerer a titularidade. Venha aqui com o Sr. Josafá.
-Ele já morreu também.
-Então pode ser o Sr. Dinizar.
-Também já morreu.
-Então o Sr. Luiz.
-Não só já morreu também, como também está enterrado nesse túmulo no qual queremos botar a lápide.
-Ah, sim, a senhora é a viúva dele?
-Não, sou a viúva de Osíris, o irmão dele, que foi o primeiro a ser enterrado nesse túmulo. A viúva dele também já morreu, e está enterrada junto dele nesse mesmo túmulo.
-Então a esposa do Sr. Carlos tem que autorizar.
-Ela também já morreu. Aliás, quando ele morreu já estava viúvo.
-Ela também já morreu? É ela que está enterrada nesse túmulo?
-Não, quem está enterrada nesse túmulo é a esposa de Luiz Marinho, que era irmão de Carlos, junto com o próprio Luiz Marinho e o meu marido Osíris.
-O Sr. Carlos não está enterrado junto com a esposa?
-Isso eu não sei. Mas eles não estão enterrados nesse túmulo no qual queremos botar a lápide.
-Mas o túmulo pertence ao Sr. Carlos?
-Pertence porque foi ele que veio comprar na ocasião do falecimento do meu marido, mas ele não usou para ele próprio ser enterrado, entende?
-Entendo. Então só com autorização de algum filho dele.
-Ele não teve filhos.
-Não teve filhos?!?
-Não.
- Se ele não teve filhos e não tem mais irmãos que possam vir, a titularidade tem que ser transferida para algum sobrinho.
-Tá certo. Vou mandar o meu filho aqui para a titularidade ser transferida para ele. O que precisa?
-Aqui não, ele tem que ir na Emlurb. Cópia da certidão de óbito do Sr. Carlos, cópia da certidão de óbito do seu marido e cópias dos documentos do seu filho para comprovar a ligação de parentesco.

Foi aí que eu entrei oficialmente na história. Nove horas da madrugada minha mãe me liga dizendo que era eu que tinha que ir na Emlurb. Depois de muito procurar, consegui desentocar essa enorme repartição das entranhas de uma obscura rua no centro da cidade.

-Bom dia.
-Boa tarde.
-É o seguinte: eu quero botar uma lápide nesse túmulo que está em nome de Carlos Marinho Falcão, e eu tenho que ter a titularidade transferida para mim para poder autorizar o cemitério a permitir o pedreiro botar a lápide.
-Onde está Carlos Marinho Falcão?
-Já morreu.
-Você é parente dele?
-Sou sobrinho. Tenho aqui os documentos comprovando.
-Tem que ter a autorização da esposa.
-Como pode ver aqui na certidão de óbito dele, quando ele morreu já era viúvo, o que significa que a esposa dele também já morreu, e até antes dele.
-Então só com um filho.
-Ele não teve filhos.
-Não teve filhos?!?
-Não.
-Então só com um irmão. Ele não tem irmão?
-Tem. Tem um irmão e duas irmãs, mas já são idosos e moram no interior. Todos os outros já morreram também.
-E ele está enterrado nesse túmulo?
-Não, ele está enterrado em outro túmulo.
-E quem está enterrado nesse túmulo?
-O meu pai, o irmão dele e a esposa.
-A esposa do seu avô do interior?
-Avô?!? Não, a esposa do meu outro tio, o que foi enterrado junto com o meu pai.
-E esse seu outro tio teve filhos?
-Teve. Teve logo quatro.
-Então traga as cópias da identidade e do CPF dos seus primos, pois como os pais deles estão enterrados nesse túmulo, eles também têm direito.

Respirei fundo e voltei à carga.

-Meu amigo, eu quase nunca vejo os meus primos, só em dia de festa. Vou levar um século pra arrecadar esses documentos. Tem certeza que isso é necessário?
-Mas se um dia eles quiserem mexer no túmulo eles vão ter que pedir a sua autorização.
-Se um dia eles quiserem mexer no túmulo eu darei a autorização.
-Mas se você morrer antes?
-Aí eu acho que eles vão ter que passar pelo que eu estou passando e provar que são meus primos. É obrigatório ter os documentos dos primos?
-Não, é opcional.
-Então esqueça. Bota só o meu nome.
-Você vai querer a titularidade dos dois túmulos?
-Dois? Não, não, não, só esse que o meu pai está enterrado mesmo, que é pra botar a lápide. Deixa o de Tio Carlos em paz.
-Mas você pode requerer a titularidade dos dois.
-Que ótimo, antes eu não tinha nenhum, agora tenho dois. Mas me deixa só com um mesmo.
-Pronto, foi dado entrada no processo. Volte dentro de quinze dias.

Quinze dias depois uma moça me liga e diz que está faltando a certidão de óbito do meu pai, que é para provar que eu sou filho dele e conseqüentemente sobrinho do Sr. Carlos. E não era que eu não tinha levado mesmo? Só levei a de Tio Carlos. Não só não levei a do meu pai como perdi a cópia. Minha mãe, não muito satisfeita, pra dizer o mínimo, me deu outra e eu levei na Emlurb.

-Pronto, aqui está.
-Certo. Vou anexar ao processo e enviar ao cemitério. Volte daqui a quinze dias.
-Quinze dias?!? Eu pensei que já estava tudo pronto, já se passaram quinze dias.
-Mas é que faltava a certidão de óbito do seu pai.

E é claro que eles tinham que esperar todo esse tempo pra me dizer isso. Liguei pra minha mãe pra informar a quantas andava o processo e ela foi logo me dizendo que a lápide já estava pronta, tinha ficado muito bonita, mas o pedreiro estava impaciente pra botar a pedra lá no túmulo, pois estava guardada numa oficina que não era a dele e podia acontecer algum acidente e quebrar. E que ele já tinha inclusive ido lá no cemitério pra começar a limpar a parede, mas nem isso deram autorização pra ele fazer. Portanto eu que pressionasse pra que a coisa andasse logo. Pressionar como? Oferecer propina? Botar um revólver na cabeça de uma funcionária e fazer ela como refém? Atear fogo nas minhas vestes e ficar na posição de lótus? Já se esperou tanto tempo, uns diazinhos a mais ou a menos não vão matar nem ressuscitar ninguém. O pedreiro que trate de tomar conta da pedra bem direitinho, senão eu apedrejo ele com o que sobrar da lápide.

Uma semana depois minha mãe me liga e pede o número do processo, porque a mulher lá vociferou ferozmente que só pelo nome não dá pra saber a quantas anda o andamento do dito cujo. Depois minha mãe me liga e diz que o processo não está no cemitério. Eu ligo pra Emlurb e eles dizem que o processo ainda não voltou pra lá.
-Mas no cemitério disseram que o processo também não estava lá.
-Mas foi enviado para lá. Se não está lá, é porque deve estar a caminho daqui.

É claro, faz sentido. Mamãe esqueceu de perguntar ao cemitério se o processo havia algum dia chegado lá. Se não perguntou, como eles poderiam responder? E o processo, claro, deveria estar sendo levado pra Emlurb por alguma alma penada arrastando longas e pesadas correntes, por isso a demora no trânsito.

Chega finalmente o grande dia e o processo se materializa de novo na Emlurb. Minha mãe me liga dizendo que eles ligaram pra ela dizendo pra eu comparecer lá urgente que a autorização estava pronta, e que eles fecham de uma e meia da tarde. Lá vou eu às 10 horas da madrugada com uma urgente cara de sono. A mulher, depois de me entregar a autorização, ainda insiste que eu tenho que levar as cópias dos documentos dos meus primos e tios daqui a quinze dias. Eles devem ter alguma espécie de fetiche obsessivo com os quinze dias. Jurei de pés juntos que levaria assim que pudesse e sumi dali para nunca mais voltar.

No dia seguinte me encontro com a minha mãe para irmos juntos ao cemitério levar a autorização que a Emlurb me deu para mexer no túmulo e, por minha vez, autoridade titular que agora sou, dar a minha autorização para o pedreiro botar a pedra, o carvoeiro dar o carvão, o ferreiro dar o ferro, o sapateiro dar o sapato, a vaca dar o leite e o gato soltar meu rabo.

-Bom dia, nós queremos botar uma pedra no túmulo do meu marido, e o meu filho aqui já tem a autorização da Emlurb.
-Certo. Tem que preencher esse formulário e preencher esse termo de autorização com o nome e identidade do pedreiro que vai botar a pedra.
-A identidade do pedreiro? Minha senhora, como vou saber a identidade do pedreiro? Só o nome não serve?
-Não. Tem que pagar essa taxa e ele tem que trazer esse comprovante de pagamento junto com a identidade quando vier botar a pedra.
-Engraçado, quando foi pra quebrar o túmulo e enterrar, não precisou de tanta burocracia. Quer dizer que se pode enterrar quem quiser a qualquer hora, mas pra botar uma lápide é esse inferno?
-Pra enterrar tem que ser mais rápido, já que está morto, não se pode esperar muito, não é mesmo? Mas quando foi que aconteceu o enterro?
-Ah, o último dos que estão lá já faz quase três anos.
-Pois é, como nesse tempo estava muito desorganizado, todo mundo mexia como queria, de uns três anos pra cá, que foi quando eu entrei, começamos a controlar mais rigorosamente.

Bem que minha mãe sempre alertava que estávamos demorando demais com o túmulo daquele jeito, coração de mãe não se engana. Nisso chega o gerente do escritório administrativo do cemitério. Pelo menos era o que estava escrito no crachá dele. Aí eu resolvi falar também.

-Posso ajudar?
-Meu amigo, pelamordideus, nós estamos querendo botar uma lápide nesse túmulo que está escrito nessa autorização da Emlurb, eu já sou o titular do túmulo, e ela agora está dizendo que precisa até do número da identidade do pedreiro. Lá na Emlurb já me deram a maior canseira, vamos ver se a gente consegue desenrolar essa coisa mais rápido.

O gerente, um senhor magro e ossudo, como convém a um gerente de cemitério, fez uma longa pausa olhando o documento por debaixo dos óculos, com um ar gravíssimo.

-Avemaria, pela demora em responder, lá vem mais complicação!
-Calma, eu não posso responder sem antes analisar. Depois amanhã o seu pedreiro chega e não pode botar a pedra, e aí não vai adiantar nada.
-Tem razão, pode analisar à vontade, durante todo o tempo que for necessário.
-Ainda por cima eu não estou com a cabeça muito boa hoje, estamos tendo aí, agora mesmo, o enterro de um bandido muito perigoso que foi assassinado, e temos que fazer tudo com muito cuidado, pois a corja dele é que veio enterrar, e queremos evitar qualquer problema.
-Nossa, o senhor realmente tem muita coisa pra se preocupar.
-Esse pedreiro é da família?
-Hã? Como assim? Ah, sim, não, não, ele não é parente, mas é ele que sempre faz esses serviços pra família. É o nosso botador oficial de lápides já há várias gerações.
-Não precisa de identidade. Quando ele chegar amanhã mande ele falar comigo.
-Sim senhor, muito obrigado.
-Pode pagar a taxa a mim mesmo. A moça que recebe foi almoçar. São doze reais e setenta centavos.
-Tenho aqui uma de dez... duas de dois... uma de cinqüenta.
-Deixe doze, os setenta centavos ficam por minha conta.
-Então muito obrigado. Amanhã basta ele falar com o senhor, não é?
-Basta falar comigo.

Saímos do cemitério de alma lavada, e de corpo também, porque chovia a cântaros, e fomos dar uma olhada no meu novo apartamento, do qual a minha mãe seria a fiadora. Quando procurei a pasta com os documentos de fiadora que minha mãe tinha me trazido, canto mais limpo, tinha esquecido no escritório administrativo. Volta o enterro pra porta do cemitério.

-Esqueci uma pasta cinza aqui, não sei se vocês viram...
-Ah, sim, eu guardei. O gerente ainda tentou alcançar vocês, mas o carro saiu rápido e estava chovendo muito. Olha, a moça do caixa que recebe a taxa chegou do almoço...

A moça-do-caixa-que-recebe-a-taxa começou a falar e a datilografar, invisível como um malassombro por trás de um vidro espelhado.

-Tic, tic, tic, tic, tic, seu nome e identidade, por favor.
-O quê?!? Nããão, isso já foi resolvido! Amanhã o pedreiro vai falar com o gerente!
-Tic, tic, tic, tic, tic, quem está enterrado no túmulo?
-É o meu pai!
-Tic, tic, tic, tic, tic, data da realização do enterro?
-Não sei! Eu só tinha um ano de idade, não me lembro de nada!!!

O gerente, em seu horário de almoço, não poderia me livrar desta vez daquela hidra de sete cabeças, que quando se corta uma aparece logo outra em seu lugar.

9 Comments:

Blogger Mandrey said...

Uma fábula do outro mundo!

É por essas e outras que você foi, é e sempre será o meu ídolo, até passar desta pra melhor...

PS: agora tens onde cair morto.

10:55 AM, abril 23, 2007  
Blogger Blogart said...

Pois mesmo quando você passar desta pra melhor você continuará sendo meu ídolo!

8:45 PM, abril 23, 2007  
Blogger Marcia Furriel said...

pois, deculpe o termo chulo, mas putaquiupariu! Fiquei nervosa só de ler. Até depois de morto encara-se a burocracia!!!! Só nos reta a idéia da lápide virtual! E aí, vai lançar??? Deve dar dinheiro, essa. Afe...

11:48 PM, abril 23, 2007  
Blogger Marcia Furriel said...

Comi alguns "s"! Culpa da skol. Suit them.

11:49 PM, abril 23, 2007  
Blogger Blogart said...

Já pensou, Mardy? Detalhe: esse post não é uma obra de ficção. Tudo o que foi narrado correspondeu fielmente à mais absoluta verdade. E o pior é que é "to be continued", a pedra ainda não foi colocada.

Lápide virtual, taí uma boa. Tu devias vender essa idéia ao google.

12:04 AM, abril 24, 2007  
Anonymous Anônimo said...

Hilário, Miguelito! Esta é primeira vez, desde o Dia das Trevas (morte de mainha), que consigo sorrir diante do Tema Morte!

5:19 PM, abril 24, 2007  
Anonymous Anônimo said...

Você precisa tomar uns banhos de sal grosso meu fi,pelamordideus!Eu não sabia se ria ou chorava?![Me perdoe mas ri de chorar}
Aff!Mas é como já recitou o poeta:
*Tem que pagar p nascer, viver p morrer,e prá resolver tbm!Só esqueceu de falar da burocracia!Sorte neste calvário!

6:55 PM, abril 24, 2007  
Blogger Robelix said...

KAFKA, KAFKA, KAFKA!!!

9:55 AM, abril 27, 2007  
Anonymous Anônimo said...

Rapaz, deu nervoso ler isto. Que palhaçada esta burocracia! Que irritante! Era pra parar no jornal, ora pois!

5:19 PM, abril 27, 2007  

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