terça-feira, dezembro 19

O FIM DA LINHA

Imagine se J. Carlos (1884-1950), nosso caricaturista maior, ainda estivesse vivo, lépido, fagueiro e desenhando por aí as caricaturas de Lula e Gilberto Gil em algum jornal brasileiro. Era mais ou menos isso que acontecia no New York Times, jornal onde Al Hirschfeld (1903-2003) publicou caricaturas durante mais de 70 anos (recorde praticamente imbatível para qualquer cartunista), para onde ia todos os dias dirigindo o próprio carro e onde se tornou uma lenda viva. Segunda-feira passada esse sonho acabou. Parecia que a morte tinha se esquecido ou aberto uma exceção para aquele senhor de longas barbas brancas, de uma vida simples e um traço mais simples ainda. Morreu dormindo no seu apartamento em Manhattan.
Tão genialmente simples que ousou bater de frente com ninguém menos que Walt Disney, no seu ensaio crítico sobre o desenho animado “Branca de Neve” publicado em 1938 no New York Times. Hirschfeld detonou Branca como um “autômato esquisito, com uma cabeça unidimensional, braços sem solidez e pescoço duro, e a adorável voz que o estúdio a presenteou só faz aumentar o seu aspecto de boneca de ventríloquo.”
Al sempre defendeu que, na representação gráfica do ser humano, menos é mais, e as formas simples têm mais personalidade que as complexas (ele, portanto, desprezaria olimpicamente certos caricaturistas brasileiros da atualidade que são inexplicavelmente endeusados na mass media). Tamanha foi a sua influência no cartum americano que o mesmo estúdio Disney, meio século depois da ácida crítica, rendeu-se ao seu encanto e à sua filosofia e lançou em 1994 o longa de animação “Alladin”, apresentando um elétrico e estapafúrdio gênio da lâmpada, que paga o ingresso com suas vertiginosas presepadas e cuja concepção gráfica é um tributo ao linear e sinuoso trabalho de Hirschfeld. Não satisfeitos, resolveram trazer Hirschfeld em pessoa para dentro do estúdio do “Fantasia 2000” e ser o consultor gráfico do episódio “Rapsody in Blue”, no qual o emblemático concerto para piano e orquestra do nova-iorquino George Gershwin celebra a Era do Jazz no traço inconfundível de Al.
Mas nem de longe essas seriam as únicas homenagens ainda em vida ao caricaturista ancião. A Biblioteca do Congresso americano o nomeou “Living Legend” (lenda viva), o que deve ser equivalente ao “Sir” que a rainha inglesa dá de vez em quando a algum figurão. E ele se tornou o primeiro artista ao qual foi permitido assinar o seu nome numa série de selos do correio americano (pena que Getúlio Vargas não tenha se lembrado de fazer o mesmo com J. Carlos, seria o “Olho-de-Boi” dos cartunistas). O documentário sobre sua vida “The Line King” (O Rei da Linha), onde contracena no seu modestíssimo estúdio em Manhattan com suas penas e pincéis, foi indicado ao Oscar. E como se tornou o caricaturista, ou caracterista, como gostava de se autodenominar, das estrelas e astros da Broadway, ganhou um Prêmio Tony especial, que é o Oscar do teatro americano.
Aliás, ser caricaturado por Hirschfeld na Broadway e ser publicado no domingo seguinte no NY Times era o equivalente a imprimir as mãos no cimento da calçada da fama e atingir a glória sempiterna. Um desenhista de linhas enxutíssimas, que sintetizava com impressionante precisão o caricaturado através de sinais gráficos que beiravam a taquigrafia. Quem vê um desenho de Hirschfeld imagina que aquela caricatura sempre esteve ali, apenas esperava alguém para rabiscá-la despretensiosamente no papel, como um Michelângelo que liberta seu Moisés do bloco de mármore. Mas no documentário “The Line King” ele aparece na sua prancheta meticuloso e perfeccionista, riscando esboços com grafite e apagando repetida e obsessivamente. Não é fácil ser simples.
Além da linha nobre, o Rei da Linha também lançou uma bossa: esconder no meio do desenho o nome da sua sobrinha Nina, e ao lado da própria assinatura escrevia um pequeno número indicando quantas vezes escrevera o nome. Virou passatempo nacional dos americanos achar os “Ninas” nas caricaturas da sua página dominical no NY Times, como uma espécie de jogo dos oito erros ou palavras cruzadas. Agora só nos resta juntar o nosso pesar ao de Nina e prantear o fim da linha. Ou, melhor ainda, celebrar uma vida tão longa e criativa, e que definitivamente deixou uma linha a ser seguida.

3 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Finalmente chego por aqui. Muito a ler, Miguelito!

Meu carinho,

Charlotte.

7:23 PM, dezembro 20, 2006  
Blogger Mandrey said...

Estou pasmo com a tua pesquisa aprofundada. Realmente, és um ídolo nato!

7:33 AM, dezembro 21, 2006  
Blogger Blogart said...

Carlita, sinta-se em casa. Já tem até um bocadinho de besteira aí pra ler, né? E parece que foi ontem que comecei...

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Não adianta, Mandra, eu sempre serei mais seu fã do que você meu...!

1:38 AM, dezembro 23, 2006  

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