segunda-feira, outubro 10

TEMPUS FUGIT

Sexta-feira, eu no plantão de fechamento do jornal, Leo, o guitarrista da banda, me liga e diz que vai zoar pelo Antigo com Lucas e qualquer coisa eu desse o toque. Tradução livre porém fiel: ele ia ficar zanzando pelo Recife Antigo com o irmão, procurando alguma festa ou aventura ou ambos combinados, e quando eu largasse do trabalho ligasse pra ele pra me juntar ao bando. Eu estava com um cansaço mortal de um acúmulo de mil e uma noites mal dormidas por causa de um frila interminável como as histórias de Sherazade, e um plantão na sexta no JC não é exatamente um lenitivo pra uma alma exaurida. A minha cama me chamava, mas ainda assim eu cismei que tinha que mostrar e entregar uns cartazes pra Leo divulgar na UFPE a festa de aniversário da banda no dia 1 de novembro, e também tomar uma cerveja pra desacelerar e poder dormir mais rápido. Três da manhã ligo eu pra Leo e nada de ele atender. Deduzi que não rolou nada no Antigo e eles resolveram ir pro Garagem, e a balbúrdia de lá não deixou Leo ouvir o celular. Pra quem não conhece o Garagem, não ouso descrever depois da descrição de Debbie, que me fez ficar fã do blog dela e cujo fac-símile vai aqui reproduzido sem autorização da autora:

Pelo ambiente amoquifado da foto, acho que esse povo tava no Garagem...A propósito, o que é o Garagem, hein? Nesta semana, li uma chamada num jornal local que anunciava com pompa "Tal banda lança... (não sei o quê, DVD, CD, fita-demo, pôster, sei lá) no Garagem". O leitor desavisado não imagina do que se trata esse local amundiçado e insalubre. Uma noite, passei de carro com uma amiga, aí disse, "...aqui no Garagem...". Ela: "Garagem, onde? Onde é esse bar que eu não tô vendo?" Eu: "É aí!" Ela: "Onde?" - "Aí!" Ela: "Isso aí?! Pensei que o nome fosse só uma brincadeira...". Ela achou que fosse algo como Fiteiro ou Boteco, onde você não encontra o que o nome sugere. No caso do Garagem, é meio como se o bar se chamasse Chiqueiro, e você chegando lá encontrasse os porcos e as galinhas vagando livre e divertidamente por entre as mesas. Sugiro, assim, ao dono do Garagem, o bonitinho mala, que radicalize e alopre de vez colocando os mecânicos para consertar carros, motos, bicicletas, enquanto rolam os "concertos" de bandas alternativas e enquanto o povo enche a caveira de cachaça, mais ou menos como aquelas noites performáticas dos anos 70.

É isso aí. Continuando. Passo na frente do Garagem e nada de Leo. Paro no posto de gasolina ao lado e ligo de novo. Ele atende, bêbado como um gambá bêbado, e me pergunta onde estou eu:
–Cadê você?!?!?
–Tou aqui no Garagem, kct. Cadê tu?
-Tou aqui no Segundo Jardim. Tem mulher aí?
-Caracas! Em Boa Viagem? Claro que tem mulher aqui, tem mulher em todo canto, inclusive aqui. Aliás, tem duas até que bem bonitinhas se beijando na boca aqui perto do meu carro. Peraê, fica peixe aí que eu vou-me embora pra casa.
-Tou indo praí com Lucas!
E desligou. Fudeu. Bom, daqui que eles cheguem, dá tempo de ir no Bompreço 24 horas da Rosa e Silva comprar pão francês e pasta de dentes. Deu tempo sim, voltei pro Garagem e resolvo entrar de vez. Dou de cara no balcão imediatamente com Minininha, vulgo Karina, quase já uma host informal do lugar, com seus longos cabelos vermelhos de Guinevere . Ela se abraça demoradamente comigo, e fica me dizendo: -Miguel... eu te amo... eu te amo muito, muito, muito mesmo. Tradução livre porém fiel: -Miguel.... eu estou bêbada... eu estou muito, muito, muito bêbada mesmo. Decidi que o jeito era ficar bêbado também, e já fui embarcando na cerveja e no cigarro dela, Free, que é fraco, mas pra quem não fuma, dá tonteira. E nada de Leo. Minininha: –Leo está vindo? E o irmão dele , o do nariz lindo? –É, estão vindo ambos, Leo e o nariz lindo. E nada de eu ficar bêbado. Dei um cartaz pro Dr. Octopus do balcão, ele imediatamente agarrou com um dos tentáculos e já colou com durex numa prateleira cheia de garrafas e pegou uma cerveja e mudou um cd e acendeu um cigarro de um cliente e botou gelo numa vodka e tirou outra cerveja do freezer e mudou outro cd e sumiu por uma porta de madeira estragada e retornou com garrafas vazias, um cyborg com Duracell. Chega Leo: -Êêêê, ó a Capitão Gancho ali, porra! -É, o cartaz do niver, porra! Ei, Minininha, óaquê, toma o teu nariz, porra! Jogo Lucas pra cima dela, eles ficam conversando, ela embevecida com o nariz. Bota Led Zeppelin aê, porra! Porra de anos 80 o caralho! Eu tinha moral pra pedir Led, dois cds piratas com coletâneas eram doações minhas. Passa um gigante de barbicha que adora Led. Fica aí, não vai embora não, vai tocar Led. Não acredito, êêêita porra! Mermaum, cadê o Led? Duracell faz sinal com a mão que daqui a pouco bota. Passa uma moreninha, amiga de Leo, vocalista de uma banda que também toca Led. Eu a reconheço e dou o mesmo conselho: fica aí, não vai embora, vai tocar Led. Ela dá gritinhos e pulinhos de alegria e fica mesmo. O gigante diz que só pode ficar se eu der carona pra ele, o amigo dele estava indo embora exatamente agora, fica aí, porra, eu te levo. Beleza então. Subitamente Duracell ataca de Communication Breakdown, pauleira total. Eu, o gigante e a moreninha ficamos aos pulos cantando, ela sabe a letra de cor, eu ainda não, eu me viro pra Leo, tá vendo aí, seu porra, precisamos ensaiar essa também. Leo: - peraí, deixa eu sair daqui, vai rolar beijo. -Hã? Quando olho pra moreninha, ela já está em pleno trabalho de cio, com um olhar lânguido e dançando sem tirar a vista de mim. Mas já? Cacilda, deve ser influência da ilha de edição da MTV, com aquela montagem aos pulos, eu tenho 42 anos, preciso de mais tempo! Ainda mais que eu não consegui ficar nem perto de bêbado e o dia está amanhecendo, o céu através dos buracos das telhas de amianto quebradas começava a ficar da cor do cabelo de Minininha. -Você é o vocalista da Capitão Gancho? –É, sou, e eu vi você uma vez dando canja de Led com a Má Companhia na segunda feira do Burburinho. –Foi mesmo? Gostou? –Gostei. Já viu algum show da Capitão? -Não, nunca. –Vem aqui no carro, vem ouvir a gente tocando Immigrant Song. E foi exatamente o que fizemos, fomos ao carro e ouvimos a Capitão Gancho tocar Immigrant Song. E depois Rock and Roll. E depois Whole Lotta Love. O dia amanhece de vez. Ela: -Vou fazer xixi. Eu, num limbo de cansaço e sono, boto uns óculos escuros e volto pra Minininha no balcão, Leo e Lucas já tinham sumido. Minininha: -Preciso tirar a lombra antes de dirigir... vou dormir ali no sofá...! Lembro da minha doce cama, que a essas alturas já estava rouca de me chamar, coitada. -Não, menina, acaba com essa história de dormir bêbada nesse sofá, qualquer dia desses tu vai parar nas páginas policiais da Folha. E fui levando ela em direção ao carro dela. Quando a moreninha viu que eu trazia Minininha pelo braço, passou pro banco de trás, com a cara emburrada, o que me deu uma idéia. Eu:
-Minininha, vamos lá prá casa, tu dorme lá, eu te faço café da manhã.
–Que café de manhã o quê, porra... eu só vou acordar lá pras 4 da tarde...
–Então te faço almoço e jantar.
-É uma boa... então eu vou... mas eu não quero atrapalhar... tem certeza que não vou atrapalhar...? E fez sinal com os os olhos pro banco de trás.
-Não, não, não vai atrapalhar em nada, kct. Ela atravessa a rua em direção ao carro dela. –Vamos lá, pô, tu num tá podendo dirigir, e eu não quero comer ninguém. –Não, não vou atrapalhar, tu vai ter que pelo menos dar uns beijos nessa mulher, senão eu te cubro de porradas!. E não foi. Quando volto, a moreninha está de volta no banco da frente. O gigante nos vê no carro e diz: aí, cara, valeu, vou embora a pé mesmo. E se afasta olhando desconfiado e andando de costas, como se se afastasse da cena de um crime. Era O Processo de Kafka às avessas, tudo conspirava a meu favor. Vambora então, que os guardas já começaram a multar os carros em cima das calçadas e os mecânicos já começavam a chegar, pois, Debbie, embora não saibas porque nunca ficaste no Garagem até as 8 da manhã, lá funciona de fato uma oficina, só que os mecânicos dormem em horário de gente decente. Engato a primeira e lá vamos nós pela Rua Amélia. A moreninha:
-Aquela menina estava dando em cima de Leo. Leo não tem namorada?
–Tem sim, mas ela não estava dando em cima de Leo não, o negócio dela é com Lucas. Leo é fiel.
–Que nada, meu instinto feminino me diz que ela está a fim de Leo.
Ah, bom, quem sou eu pra duvidar de uma coisa tão cartesiana quanto um instinto feminino.
–Qual a tua idade?
–Eu tenho 42, e você?
-Tenho 21.
-Ih, eu tenho exatamente o dobro da tua idade!
–Tem idade de ser meu pai!
–Pois é, tenho idade de ser teu pai, portanto me respeite.
- Meu pai tem 65, e é separado da minha mãe. Eu não gosto dos carinhas da minha idade, só fazem tomar drogas e tocar punheta.
–Tu faz faculdade?
-Não, vou fazer vestibular esse ano.
–Pra quê?
–Letras.
–Minha ex-mulher era formada em Letras, com especialização em inglês.
–Eu também pretendo fazer inglês.
–Legal, tu já canta Led Zeppelin.
-É. Tu também canta. Tu vai no nosso show no dia 15? Começa às quatro da tarde.
-Putz! Matinê? Canto, mas não pretendo ser profissional.
-É porque tem mais quatro bandas se apresentando. Eu pretendo sim, ser profissional, viver de música, tenho 21 anos, deixa eu sonhar.
-Pode sonhar, não paga nada. Vou sim pro show, claro. Me avisa no dia. Vai dizendo aí onde é tua casa.
-Vira à esquerda na próxima. É aqui. Passou. Dá uma rezinha. Aqui, massa. Me dá o teu celular. Pronto, anotei. Tu é show de bola.
-Beleza, um beijão, querida. A gente se comunica.

Minha cama, aqui vou eu, finalmente, e vou poder me espalhar à vontade. Leo não levou cartaz nenhum, porque a UFPE continua em greve. Não aconteceu nada, mas mesmo assim eu sou show de bola. Quer mais o quê?

15 Comments:

Anonymous Anônimo said...

eu sabia que tu nao ia comer ninguem nesta historia. Senti no momento em que tinha muito dialogo e passou das 20 linhas. hheheheh uhuhuhu
bjs

4:10 PM, outubro 11, 2005  
Blogger Blogart said...

Brigado, Debbie! Quanto às 8 da manhã, posso garantir que não perdeu muita coisa.

xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx

É, Bia, mas hoje ela ligou...hum...

5:11 PM, outubro 11, 2005  
Anonymous Anônimo said...

Eu, pra variar, nao tive saco ainda de ler o texto todo. Nada pessoal, adoro tudo, mas nao trabalho é foda, tem que ser sapato total. Parei na parte do nariz. Manda o moço enviar foto da linha naso-frontal dele pra mim? A-dou-ro um nariz. Hegel explica.

beso*

5:45 PM, outubro 11, 2005  
Blogger Blogart said...

Não vale, Bia já contou o final. Bom, pelo menos o final parcial, do primeiro tempo:PPP
Numtendi essa do sapato.
Tá, eu vou pedir prele mandar uma foto da protuberância nasalesca dele.

8:17 PM, outubro 11, 2005  
Blogger Blogart said...

Hegel?!?

8:18 PM, outubro 11, 2005  
Anonymous Anônimo said...

jah tinha escutado a historia parcialmente..mas por incrivel q pareça, dessa vez..tive coragem de ler o super,hiper,ultra,mega texto..
e jah percebi q n perdi muita coisa em nunca ter ido ao garagem..
hehehe..
te adoro tio sukita..
beijos..
;D

10:01 AM, outubro 12, 2005  
Blogger Blogart said...

Nada disso, próximo parada depois de um show da Capitão não vai ser no Pin Up mais não, vai ser no Garagem. Te adoro muitão, Loralinda!

1:28 PM, outubro 12, 2005  
Anonymous Anônimo said...

Eita. :-) Entao faz um agradinho a moça. :P

3:23 PM, outubro 12, 2005  
Anonymous Anônimo said...

Acabei de ler tudo.
Vc realmente falou "a gente se comunica" ou faz parte da narrativa emocionada macha pra caralho????

Fiquei na dúvida. Pq se vc falou...esquece.
Depois te explico a parada do Hegel.

5:22 PM, outubro 12, 2005  
Blogger Blogart said...

Acho que falei realmente de verdade, no sentido de se comunicar em relação à data dos shows. E ela se comunicou mesmo, me chamando pra fazer uma jam sessions das bandas num tal dia em um tal lugar. Hum... Ela deve ter achado mesmo a expressão macha pra caralho:P Hegel, sim, tou esperando.
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx
Bia, eu acho que vou comer essa moça só pra depois postar aqui a aventura com riqueza de detalhes. Todo sacrifício é válido em nome da literatura virtual.

9:18 PM, outubro 12, 2005  
Blogger Blogart said...

Debbie, show de bola já nasceu datada, mas no país do futebol, tende a eternizar-se. Essa expressão deve remontar aos idos dos anos 50, decisão da Copa no Maracanã, junto com crack, back, corner e center-forward.

9:24 PM, outubro 12, 2005  
Anonymous Anônimo said...

Estética da Arte (de Hegel): Parte III, 2a. seção, 2o. capítulo, tópico 2, letra a: "O Perfil Grego"-
Na formação ideal da cabeça humana, encontramos sobretudo o assim chamado perfil grego.
a) Este perfil reside na união específica da testa e do nariz; NA LINHA QUASE RETA OU APENAS SUAVAMENTE CURVADA (grifo meu), a saber, na qual a testa progride para o NARIZ sem interrupção, bem como mais próxima na direção perpendicular desta linha em relação a uma segunda, a qual, quando traçada da raiz do nariz até o canal do ouvido, compõe com esta primeira linha da testa e do nariz um ânuglo reto."

9:19 PM, outubro 16, 2005  
Anonymous Anônimo said...

Viu? Agora me viro pra alma de Hegel e falo:
EU JÁ SABIA! (E quem não gosta de um perfil grego, hã?)

9:20 PM, outubro 16, 2005  
Blogger Blogart said...

Pois eu não gosto. Fica parecendo o focinho de um bode. Prefiro que tenha interrupção entre a testa e o nariz. E não é o caso do sujeito em questão, o nariz dele, segundo Menininha, é bonito porque é arrebitado.

12:37 AM, outubro 17, 2005  
Blogger Unknown said...

Bem cool mesmo. Valeu a visita, esse blog vale a pena...

12:34 PM, março 29, 2008  

Postar um comentário

<< Home