segunda-feira, julho 24

SE QUERES A PAZ, PREPARA-TE PARA A GUERRA

A primeira coisa que eu vou ensinar ao meu filho, se e quando tiver um, não vai ser jogar futebol, tecar bola de gude, empinar pipa ou andar de bicicleta. Isso é coisa para pais amadores, e eu pretendo ser um pai profissional. Os pais ensinam essas coisas aos filhos com o mesmo instinto darwiniano com que os gatos treinam os filhotes a pegar borboletas e formigas, para que depois eles possam pegar passarinhos e ratos e se virarem sozinhos na cadeia alimentar. É claro que andar de bicicleta dá ao pirralho um senso de autonomia e indepedência; futebol treina a disciplina e o confronto de forças contrárias; bola de gude aguça a coordenação motora; e a pipa seria talvez uma metáfora dos altos vôos futuros e da total liberdade de expressão. Nada contra. Mas a primeira coisa que eu vou ensinar ao meu filho, se e quando tiver um, será uma coisa que condensará todos esses conceitos num só ensinamento, unirá todos esses requisitos numa só habilidade: a primeira coisa que eu vou ensinar ao meu filho será pregar botão de camisa. Isso sim, é o que ele realmente vai precisar por toda a vida, e nada cortará mais radicalmente o seu cordão umbilical. Até porque, convenhamos, andar de bicicleta, jogar futebol, tecar bolinhas de gude e empinar pipa são coisas que ele vai aprender de qualquer jeito por osmose com os amiguinhos dele, e em muito breve excederá em habilidades o próprio pai, que pensava estar abafando. E no meu caso, em se tratando de futebol, o pirralho até que nem vai precisar se esforçar muito.
Não existe nada mais desamparado do que um homem que não sabe pregar o botão da própria camisa, da mesma forma que não existe imagem maior do abandono do que um homem com a camisa faltando um botão. No entanto é uma imagem sutil, que se nos insinua no inconsciente de uma maneira quase subliminar. E as mulheres, sabendo disso (elas sabem de coisas que nem desconfiamos), apressam-se em pregar imediatamente o botão que está faltando da camisa do marido, antes que ele saia pro trabalho com a camisa de qualquer jeito. Elas têm certeza absoluta que quando as outras mulheres, as colegas de trabalho do marido, virem um botão faltando na camisa, entenderão como um sinal verde para atacar a presa, porque deduzirão que o casamento deve estar à deriva, pois que esposa desnaturada deixaria o seu marido ir trabalhar com um botão faltando? Simples demarcação de território. Alguém poderá argumentar se a solução não seria aderir de vez ao uniforme básico de camisas de malha tão em voga hoje em dia, mas não se pode ir a todos os lugares, em todas as ocasiões e em todas as profissões de t-shirt retrô.
E agora viremos a luneta pelo lado oposto para que se transforme num microscópio: e por que raios o homem deixou que a camisa ficasse sem botão até que a dedicada esposa o pregasse? O tempo que leva um botão, do exato momento que cai até ser detectado e devidamente costurado de volta no lugar, segundo apuradíssimas pesquisas conduzidas por mim próprio, é de aproximadamente uma semana. Tempo do ciclo da roupa suja se transformar em roupa limpa, engomada e... epa, tá faltando um botão. Por que será que assim que o homem, ao arrancar os últimos fiapos drapejantes das linhas que seguravam precariamente o botão moribundo, não o pregou de volta imediatamente? Porque quando ele era criança, quem fazia isso era a mãe dele, e portanto, quem tem que fazer isso agora é a esposa. Clássica transferência freudiana. Lá chegava ele na hora do almoço de um ensolarado sábado de janeiro, todo sujo de areia, voltando do futebol, da bola de gude, da pipa ou da bicicleta, e avistava a mãe sentada diante da luz de uma janela, formando um comovente chiaroscuro a la Rembrandt, debruçada com um ar compenetradíssimo sobre um pedaço de pano cujas cores e listras lhe são vagamente familiar. Ao se aproximar, em vez de levar um tapa na orelha por estar sujando o chão, é recebido com um sorriso dócil e maternal, quase submisso, enquanto é comunicado com um suave sussurro:
-Estou pregando os botões da sua camisa, meu filho.
Ele se sente de volta ao útero. Se pudesse, cristalizaria aquele momento ali mesmo e ficaria eternamente a sorver a bem-aventurança do amor filial.
Conseqüentemente, ficará conectado ao seu espírito a idéia de que o ato de pregar um botão significa amor incondicional e sem reservas, provido ininterruptamente pela mãe ou pela esposa, que eventualmente é uma mãe postiça. Se ele próprio vier a ter que pregar os próprios botões, sentirá o pavor de não ser amado novamente nunca mais. Homens há que não se separam jamais de uma mulher porque ela prega os seus botões. Por outro lado, homens há que, só pelo fato de a mulher pregar os seus botões pensam que podem aprontar de tudo que não serão jamais abandonados. De uma forma ou de outra, vejam que grande vantagem é ter essa habilidade: deixa o cérebro livre para negociar a separação ou repensar a relação em bases mais racionais.

Portanto jamais a mãe do meu filho pregará um botão na camisa dele. Se eu permitir que isso aconteça, ele se acostumará a ter de volta os seus botões perdidos como num passe de mágica; jamais atinará na suprema arte da perseverança e disciplina que é enfiar a linha no buraco da agulha, nem na coordenação motora que é exigida para passar a agulha de um lado pro outro através do pano por dentro dos buraquinhos do botão sem furar o dedo, e nem na sensação de independência, autonomia e liberdade que é poder reconstruir a própria roupa sem mendigar auxílio de ninguém. Um verdadeiro Robinson Crusoe, e sem Sexta-Feira! Saberei que meu filho estará pronto para as batalhas da vida quando ele estiver pensando com os seus próprios botões. E quando chegar o inevitável dia em que ele for sair de casa para voar com as próprias asas, me despedirei dele com olhos marejados d’água e lhe direi, como um pai do filho pródigo às avessas:
-Filho meu, eis a tua maior herança: és um Dom Quixote sem ilusões e sem moinhos, toma aqui esse botão para que te sirva de escudo, e essa agulha para que te sirva de lança; vai e segue a linha da tua vida cingindo-te sempre com a armadura da tua camisa.

6 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Ô, meu filho! Se eu soubesse que tu sofria tanto nesse mundo por não saber pregar um botaõzinho, eu juro que tinha ido aí, com chão movedor de baratinha e tudo, e tinha lhe dito, fraternalmente: tem gente que se cria sem mãe e ainda assim aprende a pregar botão com tia e avó! Deixe, meu brô, que eu ensino você a pregar esse botãozim...E meu sobrinho, se você deixar, terei o enorme prazer de ensinar a ele, como ensinei a Ziro e a Digá! Ele vai se furar sim. Mas com umas dez camisas, ele será independente! Vixe, que coisa mais linda esse botão virar escudo e essa agulha virar espada! E tuu me fizese chorar de madrugada, meketrefe!>;-((

1:40 AM, julho 25, 2006  
Blogger Blogart said...

Oxe, e quem disse que eu não sei? Ora, se sou eu qum vai ensinar ao meu filho! Sou craque, botão que eu prego e arremato com nó de marinheiro nem o diabo tira!

1:55 AM, julho 25, 2006  
Blogger Mandrey said...

Quixote "Só no Migué",

Louvo a sua preocupação de passar adiante tarefa tão milenar quando (e se) tiveres a bênção da paternidade. Porém, baseado em experiência própria, de fininho, tenho uma observação bastante pertinente a fazer: os botões caem para que seu umbigo possa enxergar o mundo. Sim, porque tenho certeza que o botão fujão é o penúltimo, sempre pressionado pela deformidade abdominal causada pelos prazeres da gula e da veneração a Baco, Dionísio, Zé Pilintra e todas as entidades chegadas na água que passarinho não bebe. Se o seu herdeiro genético desenvolver tal habilidade, sugiro ensinar a pregar botão com linha de pesca... muito mais resistente e fica fluorescente "na night". Mandra Brasa!!!

10:03 AM, julho 25, 2006  
Anonymous Anônimo said...

Que fofo. Quando você tiver um filho eu quero conhecer.

11:52 AM, julho 25, 2006  
Blogger Blogart said...

Se o cubano for deportado, a gente pode fazer um, Mardy. Aí sim tu vais conhecer ele bem direitinho.

7:18 PM, julho 25, 2006  
Anonymous Anônimo said...

hehehehheehehehehhehehe

Olha que eu falo pra ele, hein?!

Bj

10:35 AM, julho 26, 2006  

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