segunda-feira, janeiro 23

O MENINO É O PAI DO HOMEM

Conta um dos evangelhos (Lucas 2:41-53) que aos doze anos de idade Jesus debatia com filósofos e teólogos no templo de Jerusalém. Mozart aos doze anos compunha sinfonias e óperas. Acaba aí a semelhança entre os dois. Seria preciso uma enorme disciplina espiritual e uma natureza divina para entrar na adolescência com essa bagagem sem trazer dentro dela uma certa arrogância infantil. Jesus, segundo os evangelhos, conseguiu. Mozart, humano, demasiadamente humano, não. Ostentando uma tolerância zero para com o pecado da mediocridade, chegava a destratar os músicos da corte em plena partitura, escrevendo em cima de um trecho intencionalmente complicado para algum solista desafeto: "-Vê se consegue tocar isso, sua besta!". A criança, cujo principal brinquedo era a música, exigia dos adultos nada menos que a perfeição, e com a crueldade ingênua típica das crianças aduladas. O menino é o pai do homem, como diria Machado de Assis, e o Peter Pan da música erudita continuou chutando traseiros vida afora: no terceiro movimento do Concerto de Trompa no. 2 (KV 417) simula um ensaio de um trompista hesitante, enquanto as cordas zombam do solista com um gracejo ridículo. Num dos divertimentos musicais mais famosos, "Ein Musikalischer Spass" (Uma Piada Musical, Concerto para duas trompas e Cordas, KV 522), satiriza a mão pesada e os fraseados musicais óbvios dos compositores sem talento, dando-se ao luxo de fazer a orquestra desafinar de vez em quando no segundo movimento, e encerrar o quarto e último movimento com um tutti frouxo e meio dissonante. É realmente hilariante, mas para os seus críticos mais severos esse lado ferino e sarcástico de Mozart era um distúrbio de personalidade que em nada enriquecia a sua biografia e do qual ele precisaria se livrar o mais rápido possível. Ele se redimiu logo depois compondo a elegante "Eine Kleine Nachtmusik" (Uma Pequena Serenata, KV 525), obra-prima do estilo rococó que se tornou a sua assinatura musical mais imediatamente reconhecível, o equivalente ao que "As Quatro Estações" significa para Vivaldi e a "Quinta Sinfonia" para Beethoven.
O eterno espírito moleque encontrou no libretista Lorenzo da Ponte o parceiro ideal para aprontar mais presepadas no seu passatempo predileto: compor óperas. Na parceria mais celebrada da dupla, "Don Giovanni", Lorenzo leva Mozart a satirizar a si próprio. Durante a cena do jantar que antecede a entrada apoteótica e apocalíptica do fantasma do Comendador, uma pequena orquestra inserida no elenco anima a refeição com trechos de óperas de outros autores de sucesso na época. Cada citação é saudada com um brinde de vinho por Don Giovanni ("La Cosa Rara", de Martín y Soler e "Litiganti", de Giuseppe Sarti). Quando a orquestra ataca de "Non Piu Andrai", famosa ária de Fígaro de "As Bodas de Fígaro", o folgado criado Leporello se encarrega de despachar: "-ah, não, essa aí eu já ouvi até demais!". E eles, Giovanni e Leporello, continuam o diálogo com uma nova e debochada versão da ária, adaptada para encenar uma picuinha entre os dois.
Mas nem só de frivolidades e loucuras vivia Mozart. Em 1784, um lampejo de maturidade faz ele entrar para a maçonaria. Entra na ordem como aprendiz e no ano seguinte, só pra variar, já era mestre. Isso o levou a compor muitas obras de inspiração maçônica, que tinham a vantagem de não serem encomendadas pela corte e gozar de total liberdade e mais profundidade. Como a "Música para os funerais maçônicos" e a ópera "A Flauta Mágica", onde o homem e
o menino estão finalmente em perfeito equilíbrio. Peter Pan, ainda que tardiamente, saía da Terra do Nunca. E cá pra nós, felizmente ele saiu tarde. Afinal, não somos críticos tão severos assim.

6 Comments:

Anonymous Anônimo said...

minino, outras pessoas merecem ler isto. Publica, publica na Continente ... :P

2:09 PM, janeiro 23, 2006  
Blogger Blogart said...

Vai sair no Caderno Especial de 250 anos de Mozart, sexta no JC.

6:58 PM, janeiro 23, 2006  
Blogger Blogart said...

Eita, beleza, DebbieMommy, quero ler!

11:43 PM, janeiro 26, 2006  
Blogger e. s. said...

Este comentário foi removido por um administrador do blog.

8:21 AM, janeiro 30, 2006  
Blogger e. s. said...

Blogado!

=)

8:22 AM, janeiro 30, 2006  
Blogger Blogart said...

Hey, Grapevine, valeu o link!

12:19 AM, fevereiro 01, 2006  

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