terça-feira, novembro 15

HAPPY HOURS

Tinha que ir no banco levar o dinheiro do acordo do cartão de crédito, que pela enésima vez eu farrapei e não queria farrapar pela enésima primeira, nem tanto pelos juros, mas pra não ouvir de novo o “senhorrrrrrr pode me confirmarrrrrrr” com sotaque caipirrrrra de Zé Dirrrrrceu. Tomei dois expressos no Habib’s da Conde da Boa Vista e fui pro banco. Lá chegando e na fila, deu preguiça de começar mais um livro de Maigret e parar daqui a uns minutos, resolvi ligar pra Naara, e combinei de levar um dicionário de folclore que ilustrei pra biblioteca que ela dirige. Saí do banco e tomei mais um expresso na Praça Machado de Assis, cuja principal característica é a total inexistência, e fui a pé pra biblioteca de Naara. Como o livro é de folclore e ilustrado por mim, calculo que vai ser desviado pra biblioteca pessoal dela, mas a intenção era essa mesmo, e foi isso que dissemos rindo um ao outro. Saí da biblioteca e fui andando pra casa, eram cinco e quinze, muito cedo ou muito tarde pra qualquer coisa, ainda mais pra alguém de férias. Lembrei que não tinha almoçado, e depois de titubear hesitante na Riachuelo (a rua, não a loja) resolvi ir inaugurar o Bar Central, do meu amigo André Rosenberg, que até hoje só conhecia de passagem, literalmente, ou indo pro Parque 13 de Maio ou indo pro Jornal. Cheguei e fui recebido pelo próprio André, gentileza em pessoa, e fui me instalando numa mesa não muito central. Coca light com gelo e limão, pra começar os trabalhos. A luz da tarde que morria e a do bar que nascia tornava proibitiva a leitura, mas ainda assim avancei algumas páginas, e desisti. Mais uma Coca, e a cafeína zumbia no meu cérebro. Foi quando eu vi, na mesa ao lado, Vênus de Milo apaixonada por Toulouse Lautrec. Um toulouse lautrec moreno curtido de sol, magricela, careca e com a barba cuidadosamente desenhada na cara ossuda, e tão baixinho que quero crer que balançava as pernas na cadeira. A Vênus, dobro da estatura e longos cabelos encaracolados descendo em cascata pelos ombros, o olhava ternamente, enlevada e embevecida, enquanto ele falava coisas com um ar muito grave. Eu apurava o máximo os ouvidos pra pescar nem que fosse uma frase, ele provavelmente estava recitando palavras mágicas. Desisti também, corroído de ciúmes, e fui cascavilhar a radiola de ficha: Miles Davis, Chet Baker, Chico Buarque, Chico Science, Luiz Gonzaga, Christophe, Reginaldo Rossi, Cole Porter, opa, Cole Porter, Night and Day com Ella Fitzgerald. E depois My Funny Valentine com Sinatra, a ficha dá direito a duas músicas. No dia que eu encontrar Leopoldo aqui vou finalmente mostrar a ele de uma vez por todas que Tom Jobim surrupiou o “Samba de Uma Nota Só” da introdução de Night and Day. Influências do Jazz. A voz d’Ella inunda o bar e envolve a todos numa atmosfera encantada de happy hour, nada mais happy hour do que Night and Day cantada por Ella Fitzgerald. Até Toulouse Lautrec largou da sua sessão de hipnose com a Vênus e me perguntou que música era aquela. Eu respondi com ares blasé de entendido, caprichando na pronúncia pra impressionar a Vênus. E impressionei mesmo, ela agradeceu a prestreza da consulta com um sorriso submisso. Desisto dessa Vênus, muito fácil de ser conquistada. My Funny Valentine me lembrou Naara, eram já dez pras seis, ela devia estar saindo da biblioteca, liguei pra ela de novo convidando pra vir pro Central. Ela disse que viria, mas primeiro ia passar em casa pra se arrumar, ia cantar num aniversário de casamento, vem, a gente lancha aqui e depois eu te levo, tá, não convido porque é uma festa privada, tudo bem, tenho que ir pra casa trabalhar de qualquer forma, frila pra entregar, beleza. Nisso um grito agudo e feminino quebra a tal atmosfera encantada do happy hour, vinha do lado de dentro do balcão. Pensei que tinha sido uma barata, mas logo outro grito mais alto e mais agudo, talvez um rato, agora vários gritos e um tumulto de briga e quebra-quebra, hum, talvez um rinoceronte, os garçons correm pra acudir seguidos por André, vê-se e ouve-se dentro do balcão um arranca-rabo e um empurra-empurra, nisso sai correndo uma cozinheira ou garçonete pro meio da rua dizendo que vai chamar a polícia pra prender esse desgraçado, enquanto o desgraçado bufava, praguejava e resfolegava e era imobilizado pelos garçons. As mulheres debandaram das mesas e correram em polvorosa escadaria acima, Vênus inclusa. Ânimos serenados, perguntei a um garçon que diabos tinha sido aquilo. –Problema gaioso, limitou-se a responder. André, gentileza em pessoa, veio se desculpar com os clientes, um por um. Um cara de óculos de intelectual botou Janis Joplin na radiola, eu disse a ele que botasse qualquer coisa, menos Reginaldo Rossi, pelamordideus, senão o cara surta de novo. Um bêbado chato veio me cumprimentar e dizer que a minha piada tinha sido muito boa. A mulher dele tratou de reconduzi-lo à mesa. Resolvi voltar a ler Maigret, pra desencorajar bêbados e chatos. De repente, um estrondo: cai do céu em cima da mesa um songbook de bossa-nova. Era a louca da Naara, toda elegante. Fiz grandes salamaleques e elogios, está linda, ela nem aí, esperava que eu dissesse aquilo mesmo. Tá com fome, tou, eu pedi um sanduíche de carne com queijo-do- reino, pede um só com queijo pra mim, ah, um toast, é, e um leite com Ovomaltine. Perdesse o melhor, o que foi, uma briga arretada, problema gaioso. Que horas, sete e meia, tá quase na hora. Na saída, quando digito a senha pra pagar no cartão, toca o celular, era do Garrafus, agora sob nova administração, tentando marcar show da Capitão na sexta-feira. Tava cortando, tive que ir pro meio da rua pra dar antena, quando desliguei já vem Naara com meus livros e carteiras e tudo. -Já vi que tava falando com mulher, chega mudou a voz. –Claro, e eu vou falar com mulher do mesmo jeito que falo com homem? -Pois, se eu não conheço, falo do mesmo jeito com todo mundo. Pegamos o carro e levo Naara na Rua do Apolo, que eu sempre confundo com a célebre Rua da Guia, no Recife Antigo. Nas despedidas, liga Manu, doida pra sair na véspera de feriado mas sozinha, o marido fazendo concurso público no Paraná. –Meu amor, que saudade! Amor da minha vida! Naara: -Eita, é mulher de novo! Acredite não, ele vive dizendo o mesmo pra mim! Manu: -Quem é essa ciumenta aí? –É uma louca. Não pode ser outro dia não? Eu tenho que entregar o frila de Mário Hélio, e Mário tu conhece bem, né. Naara se intromete: -Tu tá de férias mas ela não, amanhã é feriado, ela não vai poder outro dia, vai hoje. Era verdade, me compadeço de Manu e vou buscá-la. Mas antes tenho que parar num posto pra botar gasolina. Quando fui procurar o cartão, canto mais limpo. A louca da Naara deixou no Central. Manu, a gente vai pro Burburinho, mas antes vamos dar uma passadinha no Central, meu cartão ficou lá. No Central, nada de cartão, André, gentileza em pessoa, pessoalmente se encarregou de procurar. Ligo pra Naara e ela praticamente já sabia do que se tratava: -Tá naquele bolsinho da carteira que bota cheque. -Eu não ia achar nunca. Oxe, e tu num vai cantar não? Nove horas já. –Vou cantar agora mesmo, se você deixar! Manu já tinha se enturmado numa mesa lá de cima da escadaria, a turma da agência de publicidade que ela trabalha estava lá, inclusive o chefe. Contei o caso do problema gaioso e ainda chamei o garçom autor do título pra confirmar, todos riram. Onze horas, pede uma parcial, vamos pro Burburinho ver Má Companhia. Na saída, Leopoldo. Agora te peguei, seu filho da puta, venha ver, garçom, me dá uma ficha aí, olha aqui, Night and Day é o teu genial Samba de Uma Nota Só, botei duas vezes na mesma ficha pra confirmar. -Não, o tempo é diferente. -Claro que é diferente, um é bossa-nova, o outro é jazz, mas as notas são as mesmas. -Não tem nada a ver. -Ah, vai te foder, vambora Manu.
O Burburinho, véspera de feriado, mais do que nunca, justificava o nome.

6 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Tá gastando a pontinha dos dedos, hein??? Vá ver televisão, hehehe!!!

E pq não dá um pulo aqui no RJ pra pegar uma prainha e dar uma passeadinha? Esse feriado foi Sol total, com a graça de Buda! Agora é voltar pra realidade...nhé.

8:06 AM, novembro 16, 2005  
Anonymous Anônimo said...

NECESSÁRIO!!! :P Q tanta muié atrás. Eu adoro Ella cantando Night and Day. Ainda nao fui neste Central. :-)
Continua de férias? Q saco ter que pagar fatura do cartão. : /

8:18 AM, novembro 16, 2005  
Blogger Blogart said...

Olha que eu vou mesmo, hem, Mardy? Tou precisando de umas férias das minhas férias! A tua irmã (como era mesmo que tu chamava ela? Ah! Biscate!) tá solteira?

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Ainda não foi no Central? Peça ao seu namorado da terceira divisão pra lhe levar! Fatura nada, foi acordo de cancelamento, apagar das luzes, moratória, bancarrota, ruína, les miserables de Victor Hugo. Quanto às mulheres, isso porque eu vos poupei de relatar o assédio no Burburinho, senão essa crônica não gozava nunca...!:PPP

7:08 PM, novembro 16, 2005  
Anonymous Anônimo said...

A Biscate tá. A outra não tá.

Eu ia dizer pra vc vir logo e aproveitar o Sol, mas o tempo acabou de virar, hehe!!! Pelo menos aqui vc pode beber no boteco depois das 23h, hein? Tá valendo!!!

12:01 PM, novembro 17, 2005  
Anonymous Anônimo said...

A Biscate tá. A outra não tá.

Eu ia dizer pra vc vir logo e aproveitar o Sol, mas o tempo acabou de virar, hehe!!! Pelo menos aqui vc pode beber no boteco depois das 23h, hein? Tá valendo!!!

12:01 PM, novembro 17, 2005  
Blogger Blogart said...

A outra não? Que pena, ela até confunde a minha voz com a do namorado...

8:12 AM, novembro 18, 2005  

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