quarta-feira, agosto 3

Post Mortem

-E aí, aquele negócio tá de pé?
-Aquele negócio tá de pé, tou esperando só uma posição sua.
-Então me pega de quatro.
-Com o maior prazer.
-Vem de branco.
Apanhei Bia às quatro da tarde e nos enfurnamos nas brenhas de Olinda pra procurar um terreiro de macumba. Apesar do diálogo inicial, não era sacanagem, era pesquisa de campo pro mestrado de antropologia dela e eu ia no papel de acompanhante e eventual guarda-costas (vide post no blog dela ao lado). Foi mais fácil de achar do que eu pensava, tinha um monte de gente de branco indo na direção indicada no mapa. Bia estava também de branco da cabeça aos pés; eu, com um tênis que um dia foi branco, de calça jeans desbotadíssima e t-shirt branca com a marca da Goodyear. Foi o mais branco que eu consegui ficar, espero que os espíritos não sejam cismados contra as multinacionais de pneus. Chegando na porta uma mocinha miúda com uma expressão pungente nos atendeu, toda de branco, e nos pediu pra assinar uma ata ou livro de presença. Tinha gente em todo canto, nas portas e janelas, mas quem entrava tinha que assinar. Pra que, não sei, mas no ato da assinatura ganhava um bombom embrulhado em papel branco. Já fui vendo que o negócio era organizado, tinha merchandising e tudo. Logo na entrada via-se um grande bolo branco de noiva de vários andares. As paredes cobertas de azulejo com flores cor-de-rosa e salpicada de santos do baixo clero, como São Jorge e São Sebastião, aquele que fica amarrado numa árvore crivado de flechas. Uma bandeira do Brasil pintada cobria todo o teto e o chão estava atapetado com folhas de laranjeira, e o perfume das folhas pisadas enchia o salão. O batuque e a cantoria já estavam a plenos pulmões, e da porta do salão vimos o que parecia ser a cerimônia de abertura da convenção anual das vendedoras de acarajé: uma ala de baianas dançava em círculo, e no centro da roda dançavam os baianos, que como não tinham babados nas roupas e em vez de lenço usavam boinas, pareciam mais enfermeiros de hospital público. Volta e meia, sem mais nem menos, alguém cumprimentava um outro alguém esticando o pescoço de um lado pro outro e tocando ombro com ombro alternado, mais ou menos como os galos de briga fazem quando estão se estudando. O batuque não casava direito com a cantoria, ia cada um num ritmo diferente, no estilo daquele remix que fizeram de technohouse com canto gregoriano. O cantochão, puxado por um negão de três metros de altura por cinco de largura, era falado em dialeto africano e cantado em uníssono, era conhecido de toda a congregação e todos sabiam a hora exata de entrar e o que dizer. Devia repetir-se a cada cerimônia durante décadas a fio. Foi quando baixou o santo num mulato esguio e ele começou a fazer umas coreografias bem exageradas e olodúmicas, arregalando os olhos e fazendo caretas feito Daniel Day-Lewis em “Meu Pé Esquerdo”. Alguém encarregou-se de tirar o chapéu e os colares dele. Ele mergulhou de cara no chão e ficou esticadão lá. A ciranda continuava indiferente ao possuído, exceto quando ele vinha cumprimentar um ou outro no estilo galo de briga. Não cumprimentava a todos, e me escapou o critério de escolha. Bia dançava acompanhando o batuque. Eu me sacudia de vez em quando pra não causar muita espécie, porque embora não estivéssemos na roda, estávamos dentro do salão. Baixou o santo numa mulher baixinha, ela começou a dançar girando. Tiraram os colares dela também e ela mergulhou no chão lá junto da batucada, que estava lá do outro lado do comprido salão, bem longe de nós. A ciranda rodava. Daniel Day-Lewis continuava firme e forte, alheio à concorrência da baixinha. Uma negra gorda de lindo sorriso branco vinha distribuindo punhados de arroz com pétalas de cravo branco. Fomos agraciados também com o nosso quinhão. Olhaí, Bia, eu não disse que ia ter casamento hoje aqui, quero comer daquele bolo. Indaguei ao redor e nos explicaram que não se tratava de casamento nenhum, o arroz era pra jogar em Nanã, aquela que vai entrar de branco e roxo. Deveria ser o clímax da coisa toda, e imaginei Nanã uma velha matriarca de cabelos prateados, nigérrima e gordíssima, filha da fundadora cuja foto as paredes de azulejo ostentavam. Ou neta, uma vez que esses terreiros geralmente são tão seculares quanto os maracatus. De repente uma agitação na entrada e um séquito de homens e mulheres muito graves e vestidos de lilás abrem alas pela multidão. Tentei identificar Nanã naquela floresta de renda branca, mas a procissão já se postava diante dos batuqueiros. Alguém jogou um punhado de arroz. Jogamos os nossos também assim meio sem destino, torcendo pra que atingisse Nanã. Ficávamos nas pontas dos pés tentando encontrar alguma brecha, mas a multidão, que continuava dançando e girando ao som do batuque, nos deixava ver apenas flashes. Assim não dá, puxei Bia e fomos nos acotovelando de mansinho pra mais perto do foco dos acontecimentos. O que quer que Nanã estivesse fazendo, ela o fazia nas regiões inferiores fora do alcance da nossa visão, e as pessoas do time lilás tinham que se abaixar pra cumprimentá-la ou pedir seus conselhos no chão. Foi quando eu vi Nanã. Um corpinho miúdo e raquítico, ajoelhada com o rosto no chão, e por baixo do vestido lilás emergia nas costas uma generosa corcunda. Coitada da velhinha, já deve ter uns novecentos anos. Foi quando Nanã desmaiou exausta e a carregaram nos braços desacordada pra uma cadeira perto da banda e depois, sob aplausos gerais, pra fora do salão. Vimos finalmente o rosto de Nanã: não tinha nem dezessete anos, e era exatamente a mocinha miúda de expressão pungente que nos tinha atendido no início com os bombons, com uma expressão mais pungente ainda. Tivemos portanto uma recepção de gala, recebidos pela estrela principal da festa. O batuque continuou, e a dança também, mas era o meu domingo de plantão na Redação e eu tinha que ir. Não sem antes prometer à Bia que voltaríamos pra ver a Jurema, que é o ritual fechado ao público, só para os iniciados, conforme nos explicou um negão gay que fazia as vezes de relações públicas na saída. Ele nos deu a cada um uma cartilha com um dicionário de termos e notas explicativas, onde ficamos sabendo que Nanã não era exatamente a mocinha, mas a entidade espiritual que ela, e tão somente ela, recebia. Não deu pra ficar pra comer o bolo de noiva de Nanã, tive que me contentar com o bombom que ela me deu. O meu e o de Bia, que, graças aos santos, ficou com medo de comer o dela.

7 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Impressionante! Já li o relato dos dois (vc e Bia) e fiquei me imaginando nessa casa aí dos azulejos...Acho que teria medo. Essas coisas de sincretismo, Daniel day-Lewis e mulheres desmaiando são demais pro meu pobre ceticismo.

10:49 AM, agosto 05, 2005  
Blogger Blogart said...

E nós vamos voltar lá pra visitar uma fantasma pitonisa que adivinha sua vida e dá conselhos, num ritual que se chama Jurema. Bia já a conheceu quando estava de férias em Natal, onde ela baixou num veadão, e vai tentar reatar a antiga amizade. Deve ser lá pro final do mês, dá tempo de tu se organizar pra vir.

7:39 PM, agosto 05, 2005  
Anonymous Anônimo said...

AHAHA Tá hilário. E foi isto mesmo. :P
Bora ver se rola Jurema. Mas enquanto isto podia rolar Cultura no domingo, né?
bjs

10:24 PM, agosto 05, 2005  
Blogger Blogart said...

Juremas rolarão. Só não pode ser no dia 20 do corrente, pois tem show da Capitão no Burb. Domingo no Café Cultura, estalaremos. De quatro ou às 4?

12:10 AM, agosto 06, 2005  
Anonymous Anônimo said...

:P às 4 ou depois.. hehe

9:10 PM, agosto 06, 2005  
Anonymous Anônimo said...

Vem cá, é post-mortem mesmo?
Digo, o blog já morreu? Tá um silêeencio...

3:17 PM, agosto 09, 2005  
Blogger Blogart said...

Não, minina, quem morreu foi a placa de vídeo do meu monitor, e no jornal num tá dando tempo de escrever. Mas eu vou botar um postinho pra vc já já.

3:21 PM, agosto 09, 2005  

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