quinta-feira, agosto 18

O HOMEM QUE BURLOU A MÁFIA

Como um vivente que nasceu e viveu parte da vida antes da invenção dos Shopping Centers, ainda carrego dentro do peito um sentimento de rebeldia contra essas pequenas ilhas de faz-de-conta em meio a um oceano de realidade. Antigamente, nos bons tempos da minha mocidade que não voltam mais à sombra dos cafezais, eu ia ao cinema e assistia a quantas sessões do filme eu quisesse, comprava pipoca a um preço irrisório e estacionava de graça, não necessariamente nessa ordem. Necessariamente nessa ordem foi a minha sistemática e persistente desobediência civil ao sistema xopiniano de ser. Já narrei aqui a minha infiltração em outra sessão começada logo depois do final da minha e como assisti de graça a um outro filme, isso no Tacaplex. Completei finalmente a minha trilogia subversiva no Reciplex. Quando fui assistir o Água Negra, fui comprar pipoca e o cara disse que com mais 50 centavos eu poderia comprar o sacão de pipoca. Ora, o saquinho que eu tinha comprado por quase o equivalente ao preço do ingresso já era pelo menos umas dez vezes maior do que o saco que eu comprava no cine Albatroz em Casa Amarela. O sacão, então, dava pra alimentar com sobras uma família de cinco membros durante uma semana. Foi o que eu disse ao vendedor, e ele respondeu "-pois é, agora estamos com o sistema americano, de tudo exagerado demais. Pera um pouquinho, fica peixe aí." E foi lá na pipoqueira, encheu um balde absurdo de pipoca e botou junto do meu saquinho. E disse em voz alta, pro outros vendedores ouvirem: "É uma troca por um maior, né?" E mandou eu levar os dois, sem nem ao menos dar os 50 centavos da diferença. Nada mau para um início de revolução: meu primeiro cúmplice já era um infiltrado no inner circle. Nem me importei muito com a platéia achando que eu era algum psicótico da pipoca quando entrei com os meus containers e minha coca light, o processo revolucionário já havia começado a girar as suas engrenagens e não havia retorno. Juro que tentei comer toda a pipoca, mas não deu, parei na metade do sacão, pelo qual, claro, eu havia começado. Derramei o saquinho no sacão e guardei mantimentos para futuros infortúnios, nunca se sabe até onde a clandestinidade vai nos levar. Entusiasmado com a segunda vitória em dois shoppings diferentes, resolvi radicalizar de vez e declarar guerra total e aberta. Na saída do estacionamento, dei o papelzinho e não dei o dinheiro. A moça: -são dois e cinquenta, senhor. Eu:- não tenho dinheiro, senhora. Ela pensou que eu não tinha entendido direito e repetiu, como uma gravação: -são dois e cinquenta, senhor. Eu, gaulês irredutível: -não tenho dinheiro, senhora. Ela finalmente resolveu olhar pra minha cara. Eu a encarei com a cara mais lisa do mundo, com trocadilho. Ela: senhor, se o senhor não tiver trocado, pode ir tirar no caixa eletrônico, pode furar a fila quando voltar. Não, senhora, eu não tenho dinheiro nenhum, nem aqui, nem em casa, nem no caixa eletrônico e nem na China, os últimos centavos que eu tinha na face da terra foram gastos com pipoca, portanto eu estou a nenhum, nada, zero, nientes, só me resta esse saco de pipocas, quando ele acabar, sentarei no chão e morrerei de inanição. Ela, que me fitava meio incrédula, finalmente sorriu, me pediu gentilmente para estacionar de lado para liberar a fila que já se avolumava atrás de mim e mandou um cara com um walkie-talkie chamar o gerente. O gerente chegou, de paletó e tudo. Qual é o problema, senhor? Repeti a mesma ladainha. Ele me olhou com uma cara de "o médico disse pra não contrariar", mandou walkie-talkie buscar um formulário, onde, entre outras opções, lia-se: não tinha dinheiro. Tasquei um x nesse quadradinho, ele me desejou uma boa noite, muito polido e seguro de si, como se fizesse parte da rotina. No caminho de casa, o primeiro vigilante de obra que avistei ganhou o maior saco de pipoca da vida dele. Power to the people.

2 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Você é meu ídolo! De peroba-do-campo.

5:55 PM, agosto 18, 2005  
Blogger Blogart said...

HAHAHAHAHAHAHA!

8:36 PM, agosto 19, 2005  

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