sábado, maio 7

She came in through the bathroom window

Hoje, sábado, fui acordado às oito e meia da manhã por um pombo esvoaçando dentro do meu quarto. Logo eu que nem numa segunda-feira acordo a essas horas da madrugada. Um escandaloso farfalhar de asas, e quando levantei a minha máscara do zorro sem buracos (que a minha última namorada achava meio gay mas depois aderiu) estava lá ele pousado em cima da minha prancheta, em meio a uma barafunda de papéis e pincéis, a me olhar com aquela eterna cara ingênua de perplexidade diante da vida que só os pombos sabem fazer. "-Ah, não, não me vá cagar aí!" Me levantei como um raio e saí a persegui-lo pelo apartamento. Quando me viu levantar com ares de poucos amigos saiu voando pela sala, passou raspando pela estante do som e numa manobra radical emburacou pela cozinha. Quase me derruba o raríssimo pinguim de cartola e bengala em cima do freezer, obra-prima do kitsch universal. Ficou claro durante a perseguição que era mais um ex-filhote fazendo o test-drive do seu primeiro vôo, daí a cara duplamente ingênua e perplexa e as trombadas no vidro da varanda. Agarrei o bicho por uma asa, segurei firme com as duas mãos como quem vai fazer um manifesto para a paz nas Olimpíadas (tirante que a minha pomba da paz era cinza) e lancei-o, ou lancei-a, por cima das pimenteiras para o infinito e o além. Agora ou vai ou racha, literalmente. Foi. Mas sempre vai, não me julguem um columbicida. De test-drive de pombo eu entendo. Gerações já nasceram e se sucederam diante dos meus olhos à sombra das minhas pimenteiras em flor. Eles simplesmente fazem ninho após ninho no pequeno retângulo de terra que me cabe nesse latifúndio, e ali botam seus indefectíveis dois ovinhos brancos de codorna e ficam chocando com um ar compenetradíssimo ( pai e mãe se revezam, um exemplo para os maridos) e se eriçando ameaçadoramente, como um galo de briga, quando vou regar o canteiro. Só uma vez apareceu um único ovo, e ainda assim gorou. Quando vi que estava demorando muito pra nascer, fui lá ver e o ovo já estava quebrado na ponta, mas o filhote dentro tinha virado um fóssil jurássico. Enterrei o ovo no próprio canteiro, mas a mãe se recusava a deixar a maternidade. Pronto, agora deu. Ah, é assim? Peguei um ovo de galinha na geladeira e botei pra ela chocar. E ela chocou. Ela e o marido. Ela, menorzinha, ficava assim meio de lado, como se estivesse sentada disfarçando hemorróidas. Já o marido, maior e de plumagem exuberante, cobria tudo orgulhosamente. Minha faxineira quase morre de rir.
Mas, apesar de tudo, aparentemente sou um bom locatário, porque nunca é o mesmo casal que vem se aninhar, donde se conclui que eles devem se comunicar entre si e dizer que naquele apê é a maior limpeza, não tem stress. Quem não acha a maior limpeza é a minha faxineira, mas o instinto maternal dela perdoa o esterco extra que sobra pelo chão. Que, aliás, sobrava, porque o último casal foi de uma higiene impecável, limitavam-se a adubar discretamente os pés de pimenta, que é como eles pagam o aluguel do espaço. Deviam ser pombos de classe-média alta. Quando finalmente os filhotes saem do ovo, viram adolescentes e começam a querer voar com as próprias asas, ficam a andar de um lado para o outro batendo as asas e piando alucinadamente. Os pais ainda ficam por ali, alimentando ocasionalmente e supervisionando os exercícios, até que o pimpolho deslanche. O processo todo, desde a postura dos ovos até o desmame, é coisa de quarenta dias. Teve um que demorou pra aprender a voar (como sempre tem que ter um) e os pais não tiveram dúvida: prescreveu o prazo de validade, deram por encerrada a obrigação, xau e bença. O outro irmão já tinha ido batalhar o milho dele de cada dia. E o coitado do jovem adulto ficou lá andando de um lado pro outro, sem lenço e sem documento, a se lamentar num misto de pio e arrulho, porque a voz dele já estava até mudando. É, meu velho, tu tá lascado, eu é que não vou ficar te sustentando a pão-de-ló, quem tem filho barbado é gato, o qual aliás eu gostaria de voltar a criar, mas para tua grande sorte não ouso confinar um animal das savanas num cubículo. Quando passou quase uma semana e eu vi que a coisa tava ficando preta, porque ele já estava considerando a hipótese de bicar as pimentas mais vermelhas, resolvi dar um empurrãozinho. Dei um bote, peguei o bicho e joguei pela sala. Numa ação reflexa, ele bateu as asas e aterrisou desastradamente em cima do teclado do micro. Só faltava o computador estar ligado e ele digitar: -Socorro! Quando fui pegar de novo, ele tomou gosto pela coisa e saiu espanando as asas e trombando com tudo que tinha direito e com o que não tinha. Depois de uma sequência de decolagens e aterrisagens mal sucedidas, terminou voltando pra varanda de novo. Resolvi deixar ele se refazer da maratona, esqueci e fui cuidar da vida. No outro dia tinha sumido.
Mas eles só entram no apartamento dessa forma, forçados ou por engano. No contrato de locação que eles assinam tem meticulosa cláusula delimitando espaços, e que são rigorosamente respeitados, sob pena de virarem tira-gosto pra cerveja, ovos inclusos. É da varanda pra fora, nada de excesso de intimidades. Quero crer que a minha aventureira matinal seja da turma dos ninhos do poço de ventilação, cujos piados e arrulhos ouço ecoando de madrugada, e tenha entrado através da janela do banheiro, como a misteriosa garota do disco Abbey Road dos Beatles. Agora, como e onde eles fazem esses ninhos no poço de ventilação é igualmente misterioso para mim.

6 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Muuuuuuuuito bom!!!
Deixou nada a dever ao da gordura, viu! rs...
Os pombos da Boa Vista são mesmo chegados a invadir o apartamento alheio, mas é a primeira vez que descubro um locatário tão entrosado! hehehe
Bjos, Lilly

2:31 AM, maio 09, 2005  
Blogger Blogart said...

QQ issou, o seu post da gordura é uma obra prima! Não sou digno!

9:01 AM, maio 09, 2005  
Anonymous Anônimo said...

Djísus Craist, santa verborragia, Batman!

O seu tratado sobre os pombos devia ser impresso e posto colado no elevador social e de serviço, e ainda uma cópia extra pra enviar pro Ibama, ou qualquer ONG de amigos dos pombos. Eu, particularmente, odeio todos (os pombos, não os impressos).

beso*

12:34 PM, maio 09, 2005  
Blogger Blogart said...

HAHAHAHAHAHA! Não foste tu que disseste que gostava de receber meus loooongos e-mails? Tempus fugit, tempora mutantur.
Não sabia desse teu ódio pelos bichinhos, conta aí a tua amarga experiência.

8:54 AM, maio 11, 2005  
Anonymous Anônimo said...

Veja bem, longos e-mails dirigidos SOMENTE a mim eu gosto. Verborragias promíscuas eu também gosto, mas curto também sacanear, hehe.
Quanto aos pombos, eles evacuam demais (nas cabeças alheias) pro meu gosto. Particularmente, nunca fui atingida, mas ninguém está a salvo nessas nossas metrópoles, não é mesmo? E por fim, qual é mesmo o papel dos pombos na cadeia alimentar?

1:58 PM, maio 11, 2005  
Anonymous Anônimo said...

Miiiinino. Tou vendo agora tu ensinando pomba voar. Só faltar ensinar cobra fumar. Perdesse uma oportunidade de usar "ruflar de asas". EHehehe

9:48 AM, maio 14, 2005  

Postar um comentário

<< Home